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A voz e as questões de gênero: Produção de estereótipos? Afirmação identitária? Passibilidades? (In)visibilidades?

 

Renan Santiago

 

 

Considerações Iniciais

 

A voz é o primeiro som que nos conecta à Música. Cantar, bem ou mal, é utilizar-se do próprio corpo para se expressar esteticamente. É gratuito, já se nasce com esse dom. Todos cantam...todas cantam. O que parece essencialmente belo, até poético, mascara uma situação, muitas vezes, desapercebida na educação musical: a voz muitas vezes representa questões sociais de gênero, sendo usada para (re)afirmar certa condição ou para produzir estereótipos. É extremamente importante que professoras(es) de Música, sobretudo aquelas(es) que trabalham ativamente com o canto, estejam conscientes desse fenômeno.

 

Voz e gênero

 

Na seguinte videoaula, o conceito de gênero foi explicado. Aqui, nesse texto, cabe somente indicar que as questões de gênero, de forma superficial, estão relacionadas às diferenças entre o masculino e o feminino, levando em consideração aspectos biológicos, mas, principalmente, culturais (LOURO, 2014).

No quesito biológico, a voz pode ajudar na diferenciação de homens cisgêneros e mulheres cisgêneras, pois a presença de hormônios naturais faz com que as vozes dos homens cisgêneros fique mais grave na puberdade. É interessante que a muda vocal (tanto feminina quanto masculina) se apresenta como uma espécie de marco de gênero, pelo menos na perspectiva cisgênera, pois antes dela, a voz pode ser considerada unissex em alguns casos (SERGENT et al., 2005).

Desse contexto, da questão biológica (ou seja, dos hormônios que ocasionam a muda vocal) emerge a questão cultural, ou seja, aquela que é formada dentro de determinada sociedade (EAGLETON, 2011). Percebe-se que, socialmente, a voz grave é uma representação social da masculinidade e a voz aguda (não só aguda, mas também doce e mansa), da feminidade, logo, o que foge à essa “regra” – ou seja, homens com vozes agudas ou mulheres com vozes graves – é rotulado como desviante. Em outros termos, um homem com voz aguda pode ser considerado “menos homem” ou homossexual, enquanto uma mulher com voz grave pode ser considerada masculinizada ou lésbica.

Alguns trabalhos na área da educação musical compartilham dessa ideia. Elorriaga (2011), por exemplo, descreve como o canto coral pode servir como uma ferramenta para a formação da identidade masculina, pelo fato da voz grave ser socialmente aceita como algo tipicamente masculino. Nessa perspectiva, a muda vocal foi percebida pela autora como um motivo de regozijo por parte dos jovens e como algo que propicia um senso de identidade coletiva no contexto masculino, logo, estudantes entravam em corais para “esbanjar masculinidade”.

Contudo, embora a voz grave seja “masculina”, o cantar – ou seja, usar a voz esteticamente - ainda é concebido como uma prática feminina (SANTIAGO, 2021). Dessa forma, Powell (2014), ao analisar a percepção de masculinidade entre meninos e regentes em corais australianos, identificou muitos estereótipos relacionados a um pseudo-ideal de masculinidade e a participação de meninos em coros foram levantadas pelos coristas e condutores. A autora propõe que práticas tais como: o reconhecimento de estereótipos, a percepção da existência de várias formas de se expressar a masculinidade, a adoção de um repertório viável para meninos e a ajuda de meninos em período de transição vocal são significativas para se combater preconceitos e colaborar para que mais meninos e homens se expressem musicalmente por meio de corais.

Embora os dois trabalhos citados pareçam contraditórios, a tese aqui defendida aparece em ambos trabalhos citados: a voz possui um valor social que se associa e ajuda (ou atrapalha?) na construção da identidade de gênero. Isso não é uma novidade, pois, pelo menos desde o século XVIII, se associa tessituras vocais com gêneros, a saber: vozes femininas (soprano, mezzo-soprano, contralto) e vozes masculinas (tenor, barítono e baixo).  

Nesse contexto, a tessitura vocal de um sujeito, na sociedade pautada sobre essa cultura, e as notas que ela(e) emitem, além da melodia, carregam  em si uma mensagem que é interpretada pelas(os) ouvintes exibindo os significados sobre a condição do gênero da(o) cantor(a): se trata de um menino, de uma menina, de um(a) adolescente, de um homem, de um homem viril, de um homem “afeminado”, de uma mulher, de uma mulher meiga, de uma mulher “masculinizada”.  

De posse desse conhecimento, as pessoas podem engendrar estratégias para tanto reforçar como mascarar suas identidades de gênero. Por exemplo, um homem gay pode falsear a voz, tornando-a mais grave, para “se passar” – daí vem o conceito de passibilidade - por heterossexual em determinado momento e assim não sofrer discriminação.

O que se expressa com isso é que preconceitos e discriminações também estão relacionados à voz e ao cantar. Contratenores – homens com vozes agudas – mesmo que sejam heterossexuais, podem sofrer homofobia por não cantarem de forma grave. O autor desse texto que já se aventurou como contratenor em algumas ocasiões, não recorrentemente, ouviu que deveria cantar “como homem”. O oposto também é notável: mulheres com voz grave, mesmo se forem heterossexuais,  podem ser “confundidas” com lésbicas ou com mulheres transgêneras.

É interessante notar que esses estereótipos socialmente produzidos são interiorizados, inclusive, por mulheres lésbicas. O que se indica com isso é que cantoras com voz grave, como Ana Carolina e Zélia Duncan são vistas como um ideal de representatividade para parte desse público[1], não somente pela orientação sexual, mas também pela potência da  voz contralto.

 

Qual é o gênero da voz?

 

Se se focar somente no aspecto biológico, poder-se-ia estabelecer essa relação unívoca entre voz e gênero, com homens possuindo voz grave e mulheres possuindo voz aguda. A grande questão é que a teoria da construção cultural do gênero, minimamente, tensiona essa percepção. É importante também ressaltar que o que será exposto a seguir se trata de uma teoria, e não de uma verdade absoluta, mas como essa teoria está muito em voga no momento, as(os) profissionais da educação não podem ficar sem entender do assunto.

Essa teoria – chamada pejorativamente de “ideologia do gênero” – indica que o gênero não está diretamente associado à genitália, pois o mesmo é uma construção cultural. Isso é, tudo aquilo que é associado ao masculino (o sol, a cor azul, a agressividade, a coragem, o brincar com carrinhos, a razão etc.) e ao feminino(a lua, a cor rosa, a meiguice, a sensatez, o brincar com bonecas, a emoção etc.) não são aspectos absolutos, que nascem conosco, mas sim padrões que foram construídas por determinado sociedade em determinado ambiente histórico. À guisa de exemplificação, a cor rosa nem sempre foi vista como feminina pois, no século XX, era considerada uma cor masculina e o azul era uma cor feminina[2]. Hoje em dia ela é vista como feminina por conta de modificações culturais.

Nesse contexto, se o “masculino” e o “feminino” se estabelecerem somente nas questões culturais, nada impediria que uma pessoa  que, embora nascesse com um pênis, se identifique como sendo uma mulher, não pela “posse” da vagina, mas por se identificar com aquilo que a sociedade determina culturalmente como feminino. O oposto também valeria: uma pessoa que nasce com uma vagina, caso se identifique com os padrões culturais masculinos, poderia se identificar como um homem. É importante ressaltar que, assim como a sexualidade, o gênero não é uma escolha, mas sim uma orientação que é construída em um indivíduo (LOURO, 2014). Nesse contexto, a pessoa não opta por ser de um gênero ou de um outro, ela é orientada por conta de diversos aspectos complexos e individuais. 

Esse fenômeno, ou seja, o fato de uma pessoa não se reconhecer dentro do gênero no qual lhe é designado ao nascer por conta da posse de uma ou outra genitália, é conhecido como transgeneridade. Se uma pessoa for reconhecido como menino à época do nascimento, mas se identificar como sendo uma mulher, tratar-se-á de uma mulher transgênera ou simplesmente trans. O oposto funciona na mesma lógica, e, nesse caso ter-se-ia um homem trans. Caso a pessoa se identifique com o gênero que lhe foi dado ao nascimento, ter-se-á um homem ou uma mulher cisgênera ou simplesmente cis.

Além da transgeneridade, que é concebida dentro de uma lógica masculina x feminina, existe também o não-binarismo, ou seja, a concepção de que o gênero pode situar-se entre esses dois extremos. Imagine dois pontos, um representando o feminino à esquerda e um outro representando o masculino à direita. Isso seria uma concepção binária de gênero. Já uma concepção não binária seria como se houvesse uma linha reta interligando os dois pontos, indicando que o gênero pode existir, inclusive, entre o masculino e o feminino, em qualquer ponto específico dessa linha.

Um exemplo de identidade não-binária é o gender fluid. O gênero das pessoas que assim se identificam flutuam nessa linha traçada entre o masculino e o feminino. Nesse sentido, elas, em um momento da vida, podem se sentir mulher e em outro podem se sentir homens.

Também cita-se o demigênero. Pessoas demigêneras se identificam parcialmente com uma identidade de gênero. Uma pessoa demigênero pode ser, por exemplo, 80% mulher e 20% homem. Nesse contexto, o magigênero (gênero maioritário) dessa pessoa seria o feminino e o nanogênero (gênero miniritário) seria o gênero feminino.

Existem também as pessoas agêneras, ou seja, pessoas para quais a identificação com aquilo que certa sociedade determina como masculino ou feminino não é importante. O gênero não seria uma estrutura relevante para a vida dessas pessoas e elas não sentem necessidade de expressar um ou outro gênero para a sociedade. Usando a concepção dos pontos binários (masculino e feminino) e da linha entre eles (espectro não-binário), o gênero (ou a falta dele) da pessoa agênera estaria fora desse desenho, como que flutuando.

Em outras palavras, a concepção cultural de gênero permite que uma pessoa se identifique com o gênero feminino, masculino, com os dois ao mesmo tempo, com algo estático entre ele, com algo que flui entre eles ou com nenhuma das alternativas anteriores.

Todo esse grande parêntesis foi aberto para mostrar que, nesse contexto, não há lógica em se falar sobre vozes masculinas ou femininas, pois torna-se completamente possível que uma mulher (trans) seja baixo e que um homem (trans) seja soprano. Nesse contexto, o ideal seria “desgeneralizar” as vozes (SANTIAGO, 2021), ou seja, não classificar as vozes nem como masculinas nem como femininas, mas somente como graves ou agudas. Até porque, se só existirem vozes femininas e masculinas, como ficarão as pessoas agêneras? E deveremos também inverntar a voz intersexo?

Essa questão fica muito evidente na pesquisa de Palkki (2019) que, por meio de entrevistas e observações de campo, analisou as experiências de três estudantes participantes de coros escolares nos Estados Unidos, sendo uma mulher transgênera, um homem transgênero e uma pessoa agênera. Entre outros aspectos, no tocante a voz e identidade de gênero de pessoas trans, o autor conclui cada caso deve ser analisado individualmente, pois há pessoas trans que querem que sua extensão vocal se encaixe com aquilo que socialmente aceito para o seu gênero e outras pessoas trans não se incomodam com isso, visto que havia uma entrevistada que se orgulhava da sua voz grave, já um rapaz trans empreendia esforços para tornar a voz mais grave para ser reconhecida socialmente como homem, enquanto a pessoa agênera não se importava como sua soava, pois reconhecia que não estava tentando representar um gênero ou outro. Artigos como esse apenas fortalecem a ideia de que cada caso deve ser tratado especificadamente.

 

Considerações Finais: um pouco mais sobre hormônios e vozes

 

Nesse contexto de que que a voz tem um peso social, a(o) professor(a) de Música precisa estar consciente que suas atitudes podem reforçar estereótipos que podem causar preconceito em pessoas cuja voz não se adequa a um esperado, ou que exclui pessoas com identidade de gênero não normativa, principalmente, pessoas agêneras e não-binárias.

Para um ensino de Música inclusivo, é necessário que cada caso seja estudado individualmente, garantindo assim a plena inclusão da(o) estudante. Muitas sugestões práticas são dadas nesse artigo que disserta sobre o tratamento de gênero em coros. Com certeza, algumas pessoas lerão o presente artigo e não concordarão com a teoria da construção cultural do gênero. De fato, não há necessidade em se concordar categoricamente com tudo o que foi escrito, mas é importante conhecer tal teoria e considerar que, se queira ou não, toda(o) docente terá estudantes com gênero não normativo em suas aulas e essas pessoas deverão ser respeitadas incluídas e bem-tratadas. Isso, não é uma opção.

Outro ponto que será tratado aqui nas considerações finais é uma questão pouco tratada no Brasil: hormônios naturais e artificiais influenciam nas vozes das cantoras. Lã e Davidson (2005), por meio de uma revisão bibliográfica extensa e entrevistas, dissertam sobre como hormônios sexuais, ligados ao ciclo menstrual e ao uso de anticoncepcionais, afetam na voz de cantoras de ópera na Inglaterra.

 Os estudos levantados pelas autoras afirmam que durante o período pré-menstrual e menstrual, a voz feminina se torna mais roca, pesada e a cantora tem mais dificuldade para afinar e atingir tons agudos. Semelhantemente, todo o trato vocal torna-se mais fraco, logo, "forçar a voz" pode acarretar em danos, muitas vezes, irreversíveis.

Nessa perspectiva, as autoras se posicionam favoravelmente aos "dias de licença", ou seja, cantoras profissionais poderiam ficar sem cantar durante os períodos pré-menstrual e menstrual a fim de manter sua saúde vocal. Tal ação já ocorria em alguns países europeus, porém, as autoras enfatizam sobre a necessidade de tal prática ser expandida para toda a Europa (mas porque não para todo o mundo?). Por fim, são também apresentados estudos que comprovam que o uso de anticoncepcionais também afeta na qualidade da voz.

Esse artigo foi trazido pois quando se fala de voz, gênero e inclusão, precisamos considerar que as adolescentes e as mulheres têm a voz alterada por hormônios naturais e artificiais. Nesse sentido, a(o) docente precisa ter a empatia e o respeito de – claro, sem perguntar diretamente – perceber as mudanças nas vozes de suas estudantes e não buscar forçá-las, para evitar lesões. Isso também se relaciona com o uso social da voz, pois como o artigo explicita, as licenças são dadas apenas em certos países Europeus. Às cantoras dos países periféricos, infelizmente, ainda não há essa opção.

 

Referências

 

ELORRIAGA, Alfonso. The construction of male  gender identity through  choir singing at a Spanish  secondary school. International Journal of  Music Education 29(4) 318 –332, 2011.

 

LÃ, Filipa; DAVIDSON, Jane W. Investigating The Relationship Between Sexual Hormones And Female Western Classical Singing. Research Studies in Music Education                                                                                             Number 24, 2005.

 

LOURO, Guaracira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

 

PALKKI, Joshua. “My voice speaks for itself”: The experiences of three transgender students in American secondary school choral programs. International Journal of Music Education, vol. 38(1) 126–146, 2019.

 

POWELL, Sarah J. Masculinity and choral singing:  An Australian perspective. International Journal of Music Education 2015, Vol. 33(2) 233 –243 © The Author(s) 2014, 2015

 

SANTIAGO, Renan. Música(s), no plural!: os significados produzidos pelo processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado. Tese  (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

 

SERGEANT, D. C., SJÖLANDER, P. J., & WELCH, G. F. (2005). Listeners’ Identification Of Gender Differences In Children’s Singing. Research Studies in Music Education, 24(1), 28–39.

 

 

[1] Notícia que corrobora com o explicitado: https://agenciaaids.com.br/noticia/lesbicas-defendem-em-debate-mais-representatividade-desta-comunidade-na-midia/

[2] Informação obtida em https://oglobo.globo.com/brasil/entenda-como-rosa-se-tornou-cor-de-menina-o-azul-de-menino-23343773#:~:text=O%20rosa%20era%20a%20cor,a%20ideia%20de%20%22for%C3%A7a%22.&text=Registros%20hist%C3%B3ricos%20demonstram%20que%20a,parte%20de%20uma%20constru%C3%A7%C3%A3o%20social.

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