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Precisamos falar de representatividade na educação musical
Renan Santiago
Introdução
As diferenças existem, isso é um fato inegável. Contudo, a normatividade também é uma realidade quase indiscutível. Ou melhor, atualmente, muito tem sido discutido sobre o assunto, inclusive, no âmbito da Educação. Por normatividade, entende-se a eleição de um conjunto de identidades a serem concebidas como “normais”, “ideais” ou como aquelas que melhor representam a humanidade, enquanto todas as outras são rotuladas como menos normais, desviantes, patológicas. Nesse conceito de “normalidade”, a percepção eurocêntrica, brancocêntrica e machista da sociedade elegeu como identidades normativas a raça branca, a cultura ocidental, o gênero masculino cisgênero, a sexualidade heterossexual, a religiosidade cristã e um padrão corporal esguio e jovem.
Argumenta-se que esse padrão tem um porquê: ele retrata a figura do colonizador, branco, europeu, cabelos lisos, nariz fino, lábios rosados. O pensamento colonial afeta, inclusive, a nossa percepção de beleza e a nossa concepção do que é ser humano.
Até pouco tempo, nos jornais, nas revistas, nos outdoors, nos programas de televisão, nas propagandas de margarina, quase que somente pessoas brancas, jovens e magras eram estampadas, configurando o padrão de beleza estabelecido. Ao restante da sociedade, cabia se adequar a esses padrões.
Um exemplo que pode ser bobo, mas que não é, é a novela adolescente Malhação, que sempre se passa em uma escola de ensino médio. A cada ano, a trama muda de personagens, e, desde seu início em 1995, cada temporada tem um casal heterossexual como principal. O que chama a atenção é que, embora as escolas sejam ambientes plurais, até 2016, todos os casais protagonistas eram formados por pessoas brancas.
Nesse contexto, na qual a mídia não representava (e ainda não representa) as diferentes identidades, as pessoas alisavam os cabelos, se embranqueciam, faziam dietas absurdas, negavam quem eram e entravam em depressão, ao não conseguir seguir os padrões estipulados pela sociedade. Em outras palavras, faltava (e ainda falta) representatividade, ou seja, pessoas negras, indígenas, homoafetivas, com deficiência, entre outras, precisavam aparecer nos meios de comunicação a fim de mostrar que também podem ser valoradas e estimadas.
Isso também ocorre bastante na educação. Gomes (2008) mostra, por exemplo, como as pessoas negras aparecem nos livros de história: somente no Brasil colonial e como pessoas escravizadas, sempre sendo subjulgadas por pessoas brancas. Pouco se fala sobre os esplêndidos reinos e impérios africanos, sobre suas riquezas, suas rainhas e reis. É como se a(o) negra(o) existisse para ser subjulgada(o) por pessoas brancas.
É importante ressaltar que a fotografia não era comum na época da Colônia e Império, logo, os livros didáticos, para retratar o período, utilizam pinturas feitas pelo francês Jean Baptiste Debret, ou seja, era a escravidão retratada pelos olhos de um branco. Isso não é representatividade, isso é representação, ou seja, como alguém de fora enxerga o “diferente”. É compreensível – mas não defendível – que uma pessoa branca, no período colonial, representasse as pessoas negras sobre esse olhar de inferioridade, mas o que não se pode é que, até os dias atuais, essas imagens busquem expressar a negritude em sua totalidade. Sob uma perspectiva decolonial, é importante que as pessoas negras, por elas próprias, por meio de seus olhares, das suas cosmovisões, digam quem são. Isso sim é representatividade.
Nas escolas, também, percebe-se que a normatividade influencia nas dinâmicas do ensino e aprendizagem. As crianças negras são as principais vítimas do bullying, sendo chamadas de diferentes nomes ofensivos e racistas. No ambiente escolar, em geral, não há figuras negras estampadas nos murais ou nos livros. As histórias contadas não têm personagens negras(os). Muitas vezes, crianças negras não recebem lugares de protagonismo, por exemplos, nos teatros infantis feitos nas escolas, sobrando a elas papéis de coadjuvante. Isso pode ser reflexo daquilo que, por décadas se observou na televisão, teatro e cinemas (SOUZA, 2012).
Contudo, tem-se percebido mudanças nos últimos anos, principalmente, por conta dos debates promovidos pelo movimento negro e pelas discussões engendradas pela Lei 10.639/2003 e 11.645/2008. Hoje em dia, existe uma maior representatividade na mídia e o cabelo afro, antes malvisto, passa a ser valorizado e estimado. Embora ainda de forma tímida, as escolas e os livros didáticos têm empreendido esforços para representar não as figuras negras e indígenas de forma mais positiva. Todavia, o mesmo ainda não acontece com outras identidades que também carecem de representatividade, como as pessoas LGBT+.
Introduzido o assunto, busca-se argumentar que esse movimento de repensar a representação e de promover a representatividade não tem sido acompanhado a contento pela educação musical. Isso será mais bem abordado no próximo subtópico.
Sobre a necessidade de representatividade na educação musical
Em aulas de Música, a representatividade é possível, mas, por vezes, a mesma é ignorada. Em primeiro lugar, o que carece de representatividade é a própria expressão musical das(os) estudantes. O conhecimento musical extraescolar delas(es) está sendo valorizado nas aulas de Música ou lhes é imposto o estudo de estilos musicais mais “acadêmicos”? Elas(es) têm o direito de se expressar musicalmente da forma que quiserem ou são tolhidas(os)? O primeiro passo para a representatividade é entender que não só a identidade racial e de gênero precisam estar presentes nos currículos escolas, mas também a identidade musical. Recorda-se: isso não significa que não se deve ensinar sobre outras estéticas musicais para as(os) estudantes, mas sim que é preferível ter a cultura delas como ponto de partida.
No que se refere às questões de gênero, é importante também falar sobre a história e produção musical de mulheres, sobretudo as mulheres negras. Em geral, estuda-se a vida e a obra de compositores brancos, mas as mulheres pouco estão presentes na história da Música. Essa falta de representatividade pode fazer com que as meninas e mulheres pensem que não são boas o suficiente para fazer música ou que o exercício da regência e composição são funções masculinas, o que é uma inverdade (SANTIAGO, 2021). Para se desconstruir essa ideia, é fundamental que sejam mostradas mulheres em funções de liderança, não só como regência e composição, mas também como produtoras musicais e empreendedoras.
Também falta representatividade feminina em alguns instrumentos considerados masculinos, como a guitarra, a bateria e o baixo. É fundamental que o(a) professor(a) convide ou mostre vídeos de meninas e mulheres tocando tais instrumentos, mostrando que o gênero feminino é capaz de tudo o que quiser.
Falta muita representatividade negra – masculina e feminina - no que se refere à prática de instrumentos de orquestra. É como se pessoas negras não pudessem tocar música erudita, como se fossem presas às chamadas “músicas étnicas”, sem poder se apropriar de outras produções culturais. Contudo, uma das vantagens da pós-modernidade é o hibridismo e capacidade que todos têm de incorporar à sua identidade cultural (inclusive a musical) o que lhe acharem conveniente (SANTIAGO; IVENICKI, 2015). Nesse sentido, quando estudantes negras(os) veem exemplos de musicistas negras(os) tocando instrumentos de orquestras, quebra-se estereótipos de que a música clássica não é para negros.
Falta representatividade negra e feminina também na música popular! Iza, Beyonce, Rihana e Ludmila elas já conhecem e podem ser usadas como ponto de partida. Mas quantas das nossas crianças conhecem Elza Soares? Nina Simone? Chiquinha Gonzaga? Samba Delas? Sister Rosetta Tharpe? Dona Ivone Lara? Liniker? Lia de Itamaracá? Dona Teté? Tia Ciata? Cada uma tem uma história fascinante que, sem dúvida, fascinará a todas(os), inclusive aos meninos brancos, pois quem pensa que educação antirracista beneficia só as pessoas negras precisa repensar seus conceitos.
Falta representatividade indígena também. “Opa, mas eu não tenho estudantes indígenas na minha turma”. Eu também pensava que não tinha, até que, mesmo assim, comecei a trabalhar a cultura indígena em minha aula. Uma estudante, que não aparentava ter ascendência indígena, contou como aquelas aulas foram importantes para ela, pois seu avô era filhos de indígenas e ele sempre lhe contava as histórias da aldeia. Uma educação multicultural nos proporciona boas e satisfatórias surpresas.
Falta representatividade não-cristã. Isso não significa proibir expressões de cristianismo nas escolas, pois isso seria laicidade. É necessário, contudo, que outras religiões estejam presentes na escola, para que estudantes não cristãos também sintam que suas religiões têm importância. No âmbito da Música isso significa também incluir um repertório formado por músicas sacras afro-brasileiras e indígenas.
Por fim, o que mais falta é representatividade homoafetiva, transgênera, agênera e não-binária. Essas identidades são silenciadas de muitas formas, desde a falta de pessoas LGBT+ em diferentes funções musicais – musicistas, cantoras(es), compositores etc. – até o fato das canções românticas sempre representarem uma lógica romântica cisgênera e heterossexual, no qual os amores LGBT+ não são retratados (OLIVEIRA; FARIAS, 2020). O fato não é estimular as(os) jovens a mudarem sua orientação sexual, mas reconhecer que muitas(os) – assumidamente ou não – são pessoas LGBT+ ou estão em fase de descoberta. A promoção de um repertório queer (OLIVEIRA; FARIAS, 2020) iria de encontro à representatividade desse público.
Referências
GOMES, Nilma Lino. A questão racial na escola: desafios colocados pela implementação da Lei 10.639/2003. In.: MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria Ferrão. (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
OLIVEIRA, Wenderson Silva; FARIAS, Isabel Maria Sabino de. Env*adescer a educação musical, musicar a bicha e fraturar currículos: estranhamentos sonoros para pensarfazer um currículo queer. Revista da ABEM, v. 28, p. 139-161, 2020.
SANTIAGO, Renan; IVENICKI, Ana. Música, cultura negra e formação de professores: refletindo sobre as Leis 11.769/2008 e 10.639/2003. Revista Nupeart, 2015.
SANTIAGO, Renan. Música(s), no plural!: os significados produzidos pelo processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
SOUZA, Maria Helena Viana. Relações raciais e educação: desafios e possibilidades para a formação continuada do professor. Revista de Educação Pública, v. 21, n. 46, 2012.