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Preconceitos e discriminações veladas em aulas de Música

Renan Santiago

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Considerações iniciais

 

Segundo Almeida (2018), preconceito é um juízo prévio, um conjunto de impressões e significados, produzidos sem base científica, sobre algo, alguém ou um grupo de pessoas. Nesse sentido, o preconceito residiria em um nível simbólico, que, contudo, teria potencial para transcender essa esfera inicial e, de fato, moldar atitudes, escolhas e práticas que, por fim, ofertariam tratamentos diferenciados para pessoas diferentes, sendo que pessoas que se enquadram dentro das identidades normativas seriam mais propensas a receberem um tratamento melhor ou “padrão”, enquanto pessoas que fogem à identidade normativa seriam mais propensas a receberem um tratamento inferior. Em outros termos, discriminação é quando o preconceito, consciente ou inconscientemente, é colocado em prática.

Esse é um ponto importante a ser frisado: preconceitos e discriminações podem ser feitos de forma inconsciente, ou “sem querer”.  Afirma-se isso porque, como mostra Ribeiro (2019), muitas pessoas, após reproduzirem práticas preconceituosas e serem alertadas disso, rebatem as críticas dizendo que não são preconceituosas pois têm “amigos negros”, ou “amigos LGBT+”, ou por que já “ficaram com negros” etc. Pensa-se, portanto,  que os preconceitos e as discriminações são somente atos de ódio explícito e intencional, mas, o presente texto, busca elucidar que as coisas não são bem assim. E de fato, muitas das nossas práticas no ensino de Música reproduzem diferentes tipos de estereótipos, estigmas, preconceitos e discriminações.

 

Todavia, nem sempre estamos conscientes de que, ao ensinarmos Música, estamos, muitas vezes, produzindo e reproduzindo preconceitos. De uma forma geral, o objetivo desse portal é justamente conscientizar sobre como  a Música e as diferentes formas pelas quais a ensinamos pode gerar preconceitos e discriminações. Aqui nesse texto, de forma sucinta,  serão apresentadas algumas das formais mais comuns na qual o ensino de Música produz e reproduz preconceitos e discriminações. Caso a(o) leitor(a) queira, haverá diferentes links no decorrer do texto que levarão a outros textos e/ou vídeos que aprofundarão o assunto.

Escolhas de repertório

A escolha das músicas que comporão as aulas de Música é. Na maioria das vezes, da alçada da(o) professor(a). Contudo, muitas vezes essa escolha pode refletir no silenciamento de alguns grupos culturais e/ou na ênfase em certas culturas. Em outras palavras, grupos culturais com maior poder político na sociedade, que, não por coincidência, são aqueles cuja identidade é tida como normativa, tem mais poder para cobrar que a sua cultura e conhecimento estejam presentes nos currículos escolares e universitários, e, quando isso ocorre, há uma indicação implícita de que esse e somente esse conhecimento é legítimo. Por conseguinte, cria-se o estigma de que os conhecimentos, as culturas e as musicalidades que não estão presentes nos currículos escolares lá não estão por serem inferiores, mas, na verdade, elas não estão, entre outros aspectos, por questões sociopolíticas que têm sua origem no processo de colonização.

O que se argumenta com isso é que, de forma geral, as músicas que são mais bem aceitas ou menos bem aceitas em aulas de Música estão intimamente relacionadas a aspectos que não são diretamente musicais, questões identitárias, como questões de raça, de gênero, de sexualidade, de religião e de etnia. Recorda-se que a raça que é normalizada na sociedade atual brasileira é a raça branca. Nesse sentido, a música branco-europeia é mais bem-aceita nos ambientes escolares e universitários do que, por exemplo, a música negra.

Semelhantemente, porque o cristianismo é a religião oficial do Estado brasileiro, é mais provável que a música cristã esteja presente no repertório das aulas de Música do que a música candomblecista, por exemplo. De igual modo, como a etnia indígena não é normativa no Brasil, não é comum que músicas indígenas perpassem o repertório das aulas de Música e, quando perpassam, geralmente são ensinadas somente no "Dia do índio" e de forma não autêntica.

Da mesma sorte, o gênero normativo na sociedade é o cisgênero masculino. Isso influência nas escolhas do repertório e explica o porquê de tão poucas mulheres compositoras serem estudadas nas faculdades de Música e porque suas músicas são menos estudadas e analisadas.

Também há músicas que expressam valores que não coincidem com os valores tradicionais e conservadores da sociedade, como por exemplo as músicas queer, que, entre outros aspectos, narram histórias de amor homoafetivo (OLIVEIRA; FARIAS, 2020).

No que se refere à formação de professoras(es) de Música por meio das licenciaturas específicas, no geral, constata-se que a música que forma a(o) professor(a) de Música é a música erudita nacional e europeia (SANTIAGO; IVENICKI, 2016,  2017). Até para serem selecionadas(os) para entrarem no curso, as(os) candidatos(as) precisam demonstrar capacidade de tocar músicas eruditas, ou seja, precisam ter posse desse capital cultural (SANTIAGO; MONTI, 2018). O problema reside no fato de que esses licenciandos serão as(os) professoras(es) da educação básica no futuro, e, pelo menos teoricamente, deveriam ser preparadas(os) para atuar nas e com as diferenças, inclusive, com as diferenças de repertório.

Sem esgotar o assunto, por meio dos parágrafos acima, buscou-se mostrar que a escolha do repertório pode mascarar diferentes preconceitos e discriminações. Dentro de um ponto de vista multicultural, o recomendado é utilizar um currículo heterogêneo, ou seja, formado por diferentes músicas de diferentes contextos, porque as(os) estudantes nas escolas também são heterogêneos, com raças, gêneros, sexualidades, etnias e religiões diferentes.

Diferenciação na valorização dos instrumentos

 

Existem um número indeterminado de instrumentos no mundo, mas é notório que uns são mais estimados do que outros. Existe um valor simbólico que é atribuído a diferentes instrumentos e que, de certa forma, também passa a qualificar o instrumentista. Na sociedade brasileira, não é o mesmo se apresentar como violinista de orquestra ou como pandeirista de um grupo de choro.

Por conta da colonização, criou-se a impressão de que tudo o que vem da Europa é melhor, logo, a(o) violinista, em geral, tende a ser mais a( )do que a(o) pandeirista, assim como a(o) violista, a(o) violoncelista, a(o) flautista, entre outras(os) instrumentistas de orquestra, são mais estimadas(os) do que instrumentistas populares ou tradicionais, que tocam, por exemplo, um cavaquinho, uma cuíca, um atabaque, uma rawe, um mbaraka, uma sanfona etc.

O que se pretende se argumentar é que a educação musical, principalmente por conta do modelo conservatorial, corrobora para a existência de uma hierarquia entre instrumentos que, em geral, põe os instrumentos de orquestra e/ou de origem europeia acima dos demais instrumentos. Como os instrumentos musicais também são constituintes da cultura, quando se subvaloriza determinado instrumento, indiretamente, também está se desvalorizando  a cultura onde ele se originou e a musicalidade na qual ele é utilizado.

Não se ignora também, como foi mais bem explicado nesse texto, que a lógica binária, cisgênera e patriarcal da sociedade também fortalece a ideia de que existem instrumentos masculinos e femininos, ou melhor, que a homens/meninos e a mulheres/meninas se é destinado certos instrumentos musicais.

 De fato, em certas culturas indígenas existe essa diferenciação, mas, na cultura majoritária, não é correto pensar assim, muito menos, impedir meninos de tocarem instrumentos como a harpa e o violino, nem meninas de tocarem instrumentos como o baixo elétrico e a guitarra.

 

 

 

A questão da voz

 

Isso se encontra mais detalhadamente no seguinte texto. Por ora, cabe explicar que a voz está muito associada a questões de gênero, visto que, em geral, se relaciona a emissão de uma voz grave com o gênero masculino, enquanto se relaciona a voz aguda com o gênero feminino. A própria denominação usualmente cunhada para se classificar vozes usa os termos “vozes masculinas” (tenor e baixo) e “vozes femininas” (soprano e contralto).

Com tudo, o fenômeno da transgenereidade tensiona essa percepção binarista, pois torna-se totalmente possível que uma mulher seja baixo e que um homem seja soprano. (PALKKI, 2019). Classificar vozes como masculinas e femininas é reproduzir binarismos.

Funções sociais

 

Outro ponto que vale ser refletido é a questão da figura da(o) regente, também chamada de maestrina ou do maestro, ou seja, aquela pessoa que tem o papel de chefiar, ensaiar e reger conjuntos musicais, como orquestras, coros e bandas. De fato, a figura da(o) regente é bastante estimada no meio musical e na sociedade, sendo, ao lado da figura do(a) compositor(a), a função mais estimada na Música, pela sua posição de liderança e pelo exímio saber musical necessário para a assunção desse cargo.

Até aí, nenhum problema. A questão a ser levantada é a seguinte: Existem outras figuras que exercem uma função idêntica ou muito semelhante a função do regente. Existe o mestre da escola de samba, o alagbé dos cultos Ketu, o mestre do Xondaro, mestres cirandeiros, mestres do fandango caiçara, ente outras. Porque essas figuras não são tão estimadas como são as(os) regentes de orquestras?

Mais uma vez, argumenta-se que essa diferenciação está relacionado e tem origem na colonização. Sob a lógica da crítica decolonial, afirma-se que a(o) regente de orquestra é uma figura intrinsecamente relacionada à cultura e à musicalidade europeia, que são supervalorizadas na lógica eurocêntrica imposta pelo colonizador e que perdura até hoje no pensamento colonial contemporâneo.

Em suma, tantos as(os) regentes de orquestras como as(os) mestres do saber popular, são igualmente importantes em seus contextos socioculturais, contudo, o pensamento colonial que hipervaloriza a Europa, a sua cultura e a sua epistemologia, incute na sociedade que a(o) regente é mais valoroso do que as(os) mestres do saber popular.

As(os) regentes foram aqui tomadas(os) como exemplo. Argumenta-se que a mesmo tipo de hierarquização e de produção de preconceitos ocorrem em outras funções relacionadas à Música e à educação musical. Assim como a(o) regente é mais estimada(o) do que o mestre de capoeira, a(o) harpista é vais valorada(o) do que a(o) tocador(a) de berimbau. Da mesma sorte, a(o) professor(a) de piano erudito é mais estimada(o) do que a(o) professor(a) de percussão popular. Argumenta-se que essa hierarquização também atinge os ouvintes: que aprecia e consome música erudita é mais bem visto do que quem ouve e consume funk carioca.

Não se ignora também que, mesmo se a(o) musicista ou a(o) professor(a) de Música tocar música erudita, mas não corresponder à normatividade racial, ou seja, ser uma pessoa negra ou indígena, ela poderá sofrer com as mazelas do preconceito e da discriminação. VandWeelden e McGee (2007) indicam que, pelo menos no contexto estadunidense, a plateia tende a aceitar melhor um(a) regente quando a sua raça está “de acordo” com o repertório cantado pelo coro, ou seja, quando regentes brancas(os) regem músicas europeias e regentes negras(os) regem músicas “gospel”.

Similarmente, Santiago (2021, p. 154) entrevistou um professor de música negro que desistiu do curso de Bacharelado em Piano Erudito, entre outros motivos, por conta da carga racial. Ele disse:

No meu processo não terminado de Bacharelado em [Música – Habilitação] Piano, [e]u vou dizer que a minha formação musical e pianística, mais especificamente, essa me ensinou a tocar Bach, Beethoven, Haynd, Chopin...que é lindo, é maravilhoso, mas tinha uma questão: era um negro tocando Haynd, tocando Chopin. Qual é o lugar desse negro para tocar Haynd, Chopin? E tinha uma questão de classe por [eu] ser diferente dos outros que faziam parte dessa classe de piano. Tinha uma questão de gênero também colocada, se bem que todo mundo brinca nessa relação, “ah, todo pianista é v*ado”, que é uma coisa... (mas que [sic] bom que fosse, porque o mundo seria mais...afetivado), mas a questão racial pegava um pouco mais, então eu me lembro que quando mais jovem, tocando em certos lugares, as formas dos olhares que me eram colocados e [a forma das] palmas após eu tocar.

 

Logo, as funções sociais relacionadas à Música têm relação com questões de raça, gênero, sexualidade, religião e etnia e, de uma forma complexa, produz e reproduz diferentes tipos de preconceitos e discriminações.

 

 

 

E  a partitura?

 

Quem já ouviu ou até mesmo já proferiu a frase: “Quem não sabe ler partitura é um analfabeto(a) musical” ? De fato, não se pode ignorar a importância da notação musical padronizada, mas, também não se ignora que se trata de um conhecimento europeu que, a priori, foi produzido para se grafar músicas europeias (de fato, muitas músicas, como as indianas, árabes e turcas, por usarem escalas microtonais, não podem ser grafadas na partitura a contento). Assim sendo, por ser um conhecimento europeu, exigir esse conhecimento de um brasileiro poderia ser classificado como uma violência simbólica (BOURDIEU, 2014).

Mas, é errado ensinar partitura? De forma alguma! É necessário, somente, entender porque esse conhecimento é tão estimado, a ponto de músicos virtuoses serem reprovados em exames de Teste de Habilidade Específica por não o dominarem. Fala-se aqui do músico baiano Armandinho, que já fora reprovado no THE da UFBA (LUEDY, 2009). Esse fato expressa como a posse do conhecimento europeu eruditizado é visto como uma condição sine qua non para que uma pessoa seja respeitada no cenário universitário.

Todavia, isso não seria assim se, por exemplo, a partitura fosse um conhecimento de origem africana, ou asiático ou mesmo brasileiro! É importante ressaltar que a sua relevância está intrinsecamente relacionada a sua origem branco-europeia, logo, afirmar que alguém é um(a) analfabeto(a) musical somente por não possuir esse saber é, sim, um preconceito.

Considerações Finais

 

O presente texto tem caráter introdutório e nem de longe busca expressar todas as formas pela qual a Música e a Educação Musical produzem e reproduzem estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações que são transmitidas, consciente ou inconscientemente, por meio de aulas de Música.

De fato, a Música tem potencial para gerar tais fenômenos sociais negativos, contudo, conforme discutido em Santiago (2021), ela também pode ser uma útil ferramenta na conscientização e no combate aos preconceitos. Esse portal está sendo produzido justamente com esse propósito.

Referências

 

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é Racismo Estrutural?. 1ª ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2018.

 

BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In.: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio. (Orgs.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. 15a Edição - Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

 

LUEDY, Eduardo Frederico. Discursos acadêmicos em música: cultura e pedagogia em práticas de formação superior. 2009. 325f. Tese (Doutorado em Música) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2009.

 

OLIVEIRA, Wenderson Silva; FARIAS, Isabel Maria Sabino de. Env*adescer a educação musical, musicar a bicha e fraturar currículos: estranhamentos sonoros para pensarfazer um currículo queer. Revista da ABEM, v. 28, p. 139-161, 2020.

 

PALKKI, Joshua. “My voice speaks for itself”: The experiences of three transgender students in American secondary school choral programs. International Journal of Music Education, vol. 38(1) 126–146, 2019.

 

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista / Djamila Ribeiro. — 1 a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2019.

 

SANTIAGO, Renan. Música(s) no plural!: o processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

 

SANTIAGO, Renan; IVENICKI, A. . Diversidade Musical e formação de professores(as): qual música forma o(a) professor(a) de Música?. Revista da FAEEBA- Educação e Contemporaneidade, v. 26, p. 187-204, 2017.

 

SANTIAGO, Renan; IVENICKI, Ana. Multiculturalismo na formação de professores de música: o caso de três instituições de ensino superior da cidade do Rio de Janeiro. Opus (Belo Horizonte. Online), v. 22, pp. 211-236, 2016

 

SANTIAGO, Renan; MONTI, E. M. G. Qual é o perfil de quem pode entrar? Uma análise dos testes de habilidades específicas de cursos de licenciatura em música de universidades federais. Revista Educação, Artes e Inclusão, v. 14, p. 194-220, 2018

 

VANDWEELDEN, Kimberly; McGEE, Isaiah R. The influence of music style and conductor race on perceptions of ensemble and conductor performance. International Journal of Music Education Copyright © 2007 International Society for Music Education Vol 25(1) 7–19, 2007

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