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Tratamento de gênero em corais: evitando exclusões
Renan Santiago
Considerações Iniciais
Em outro texto escrito para esse portal, buscou-se demonstrar como a voz tem uma representação social fortíssima e que é utilizada para reforçar certas identidades de gênero e também para produzir estereótipos diversos que são, muitas vezes, reproduzidos pela educação musical.
No presente texto, tendo como base diferentes artigos que trabalham o assunto (CAYARI, 2019; ELORRIAGA, 2011; PALKKI, 2019; PALKKI; CALDWELL, 2018), buscou-se analisar a questão tendo um ambiente em foco, os corais, considerando que o canto é o meio de expressão principal nesse meio e que essa forma de se fazer música é recorrente em escolas, igrejas, empresas, universidades e em outras instituições educativas. Logo, é importante refletir sobre o assunto, visto que um tratamento de gênero equivocado em corais pode (re)produzir estereótipos vários.
Refletir sobre a questão pode possibilitar que diferentes identidades de gênero sejam, de fato, incluídas no contexto dos corais, relembrando que inclusão não significa somente acesso, mas também permanência, direito a voz, representação e garantia de aprendizagem (XAVIER; CANEN, 2008).
E, interessantemente, todos os tipos de pessoas precisam ser incluídas(os) nos corais: 1) os homens, que muitas vezes são taxados de homossexuais (mas, qual seria o problema?), porque cantar seria uma prática feminina; 2) as mulheres, que, muitas vezes, se submetem forçadamente a roupas, maquiagem e penteados para agradar o público; 3) as pessoas trans, cuja voz nem sempre se encaixa nos pressupostos socialmente produzidos de “masculino” e “feminino” e 4) as pessoas não-binárias e agêneras, que, por, muitas vezes, não se encaixarem na lógica binária presente em muitos corais, também se podem se sentir deslocadas.
Essas questões serão mais bem tratadas nos subtópicos que vem a seguir.
A lógica binária dos corais
Por binarismo, entende-se a concepção de que o gênero só pode se expressar na esfera do masculino ou do feminino (LOURO, 2014). Essa visão tem sido criticada atualmente por visões que concebem que, entre e além do feminino e do masculino, existe muita coisa, isto é, outras formas de gênero.
Os corais, tradicionalmente e de forma geral, se organizam sob essa lógica binária. As vozes são classificadas como masculinas e femininas e, dessas formas, as pessoas são solicitadas a ficarem junto com pessoas do seu gênero (mulheres para lá, homens para cá) e não com as pessoas de tessitura vocal semelhantes.
Imagine a seguinte situação: em dado coral, a(o) regente solicita que mulheres fiquem à esquerda e homens à direita, contudo, nesse mesmíssimo coral, há uma única mulher trans que canta em registro baixo (algo completamente possível). Ela, obviamente, ao ouvir o comando, irá para junto dos seus pares, ou seja, das outras mulheres cisgêneras, mas ela, possivelmente, não conseguirá cantar na mesma altura das demais. O que se fazer nesse caso, solicitar que ela cante junto dos demais homens? Ora, mas trata-se de uma mulher...ela deverá ficar junto das outras mulheres? Sim, mas o registro vocal será diferente...Nesse mesmo contexto, afirma-se que as pessoas agêneras e não-binárias não teriam um local para ficarem no coro em questão.
O binarismo de gênero também influencia na própria classificação dos corais. Percebe-se que existem os coros femininos (formados somente por mulheres), coros masculinos (formados somente por homens) e coros mistos (formados por homens e mulheres, como no exemplo anterior). Todavia, essa classificação que tem como base o binarismo de gênero também exclui pessoas agêneras e não-binárias, que, não necessariamente, se definem dentro dos espectros culturalmente produzidos sobre o que é masculino ou feminino.
Caso a(o) leitor(a) ache que isso não é importante, talvez, uma grande besteira, se sugere o seguinte exercício teórico: imagine que você faça parte de um coral. Se você é uma mulher, como você se sentiria se o coral no qual você ama cantar fosse classificado como um coral masculino? E se você for um homem, como você se sentiria se o seu coro fosse classificado como feminino? Se sentiria deslocada(o), como se não pertencesse ao espaço em questão? Pois bem, deve ser assim que uma pessoa agênera ou não-binária se sente quando dizem que coral ao qual pertencem é feminino, masculino ou misto, visto que elas não se percebem dentro dessa concepção de gênero.
Destarte, além da divisão de gênero já existir, ela ainda é intensificada pelo uniforme das(os) coristas que, em geral, reforçam o binarismo de gênero: homens usam roupas socialmente taxadas de masculinas e as mulheres, além de roupas femininas, que, às vezes, são sensuais, também se apresentam muito maquiadas e com cabelos extremamente bem arrumados, para assim agradarem o público, principalmente, o masculino (ALMQVIST; HENTSCHEL, 2019). O “arrumar-se” não seria um problema em si, caso elas se produzam para se sentirem bem com elas mesmas e que não sejam “forçadas” a se maquiarem e a se arrumarem para agradar ninguém além delas mesmas. Percebe-se, portanto, que a questão não afeta somente as pessoas agêneras e não-binárias, mas também as mulheres cisgêneras e transgêneras.
Mas e quantos aos homens? Cantar não era coisa de “mulherzinha”? De fato, algumas pesquisas apontam isso, que o cantar é concebido como uma prática musical feminina (POWELL, 2015). Nesse sentido até os homens, o gênero normativo, precisariam de inclusão, para que se sintam bem nesse ambiente.
Por fim, apesar de não ser algo corriqueiro no Brasil, nem objetivo do texto em questão, informa-se que em países como os Estados Unidos e a África do Sul, que sofreram um passado de segregação racial fortíssimo, também existem corais classificados mediante a raça das(os) cantoras(es): corais brancos, corais negros e corais mistos (BATOLOME, 2018). Percebe-se outra forma de segregação que impede pessoas dos dois lados (brancas e negras) de frequentarem corais. Quando se pensa na questão de uma forma interseccional, refletindo concomitantemente entre gênero e raça, a falta de acesso parece ser ainda maior.
Como poderia ser? Por corais mais inclusivos
Uma vez identificadas práticas que podem ser classificadas como excludentes em corais, pode-se empreender esforços para que os corais se tornem mais inclusivos. É muito importante que professoras(es) de Música e regentes de corais escolares e universitários tenham esse conhecimento pois pesquisas mostram que, não obstante as escolas não sejam percebidas como safe places (lugares seguros onde pode-se ser quem se é sem sentir medo) por pessoas LGBT+, as aulas de Música, principalmente os corais o são (PALKKI; CALDWELL, 2018). Não se pode transformar um dos únicos safe places das escolas e das universidades em mais um lugar de opressão e perseguição.
Nesse sentido, é importante repensar os corais de forma tal que as diferenças de gênero não sejam relevantes. Isso acarreta em várias ações. Em primeiro lugar, como em qualquer outro espaço, o nome social das(os) coristas trans, agêneras e não-binárias deve ser respeitado. Também não é educado perguntar o nome de batismo de quem tem um nome social. Recorda-se também que tal atitude não é benevolência, mas apenas o cumprimento da Lei n° 8727/2016, que, além de assegurar o nome social, também proíbe que pessoas trans sejam tratadas por nomes que pejorem suas identidades de gênero.
Também, é preciso desassociar o canto do feminino. Cantar é para quem quer! A educação musical, inclusive aquela que se dá por meio de corais, precisa contribuir para que a sociedade modifique essa percepção e, desse modo, possibilitar que os meninos e homens sintam-se mais incluídos nos corais, caso assim desejem.
É recomendado também que as vozes não sejam classificadas como masculinas ou femininas, mas sim como graves ou agudas. Isso poderia evitar situações desagradáveis com pessoas trans, agêneras e não-binárias. Semelhantemente, não se sugere que os coros sejam classificados como masculinos, femininos ou mistos; nem que haja divisão do tipo “homens para cá, mulheres para lá”; nem que haja uniformes para homens e mulheres. Em outros termos, é importante que, sempre que possível, o gênero não seja algo relevante para a dinâmica dos corais.
Indica-se também coristas com identidade de gênero não-normativo merecem cuidado especial, do ponto de vista social, mas também musical. Conforme especifica Cayari (2019), as pessoas trans carecem de cuidado vocal, tanto que hoje em dia existem congressos especializados no tema. Esse cuidado se dá porque as pessoas trans percebem que a voz tem uma função social na identidade de gênero e, por isso, muitas acabam forçando-a para atingir os “padrões de altura” que são “esperados” para certo gênero. Em outros termos, algumas mulheres trans trabalham demais a parte aguda da voz, enquanto alguns homens trans trabalham os graves. Isso, sem o acompanhamento adequado por causar prejuízos graves no trato vocal, talvez, até irreversíveis.
Nesse sentido, a(o) professor(o) ou a(o) regente precisa ter empatia com a questão, entendo o lado da corista e ajudando-a, se assim for possível e factível, a alcançar o seu objetivo, mas sem também deixar de informá-la que a voz não tem gênero (SANTIAGO, 2021), logo, ela não será menos homem ou menos mulher caso não tenha uma voz “padrão”.
É algo que toda a comunidade escolar e universitária deve ajudar, motivando, inclusive, o professor – aqui, no masculino mesmo -, visto que pesquisas demonstram que muitos professores não buscam propiciar atitudes inclusivas em suas aulas de Música por medo de serem taxados de homossexuais (GARRET; SPANO, 2017). Isso não seria um problema, pois a homossexualidade não é um desvio de caráter, logo, ninguém deveria se ofender por ser chamado de homossexual sem o ser (ou o sendo). Todas e todos precisam empreender esforços para que as suas aulas sejam mais inclusivas, e deixem quem quiser falar o que quiser.
Por fim, sabe-se que muitas(os) professoras(es) e regentes, por questões filosóficas, sociais, culturais e/ou religiosas, não concordam com a transgeneridade, a ageneridade e o não-binarismo de gênero. Muitas(os), talvez, não acham necessário fazer quaisquer mudanças nas dinâmicas dos seus corais: está bom do jeito que está. O objetivo desse texto não é fazê-los mudar de ideia, mas somente levantar reflexões. Querendo ou não, concordando ou não, pessoas trans, agêneras e não-binárias existem e, como qualquer pessoa, precisam de inclusão. Mesmo sem concordar, tornar seus corais mais inclusivos seria uma atitude de respeito, empatia e caridade. Pensem nisso.
Referência
ALMQVIST, Cecilia Ferm; HENTSCHEL; Linn. The (female) situated musical body: aspects of caring”. Per Musi, n. 39, Music and Gender: 1-16, 2019.
BARTOLOME, SARAH J. "We sing to touch hearts": Choral musicl culture in Pretoria East, South Africa. Research Studies in Music Education, 00 (0), 2018
CAYARI, Christopher. Demystifying trans*+ voice education: The Transgender Singing Voice Conference. International Journal of Music Education, Vol. 37(1) 118–131, 2019.
ELORRIAGA, Alfonso. The construction of male gender identity through choir singing at a Spanish secondary school. International Journal of Music Education 29(4) 318 –332, 2011.
GARRET, Matthew L.; SPANO, Fred P. An examination of LGBTQ-inclusive strategies used by practicing music educators. Research Studies in Music Education 2017, vol. 39(1) 39 –56, 2017.
LOURO, Guaracira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
PALKKI, J., CALDWELL, P. “We are often invisible”: A survey on safe space for LGBTQ students in secondary school choral programs. Research Studies in Music Education, 40(1), 28–49, 2018.
PALKKI, Joshua. “My voice speaks for itself”: The experiences of three transgender students in American secondary school choral programs. International Journal of Music Education, vol. 38(1) 126–146, 2019.
SANTIAGO, Renan. Música(s), no plural!: os significados produzidos pelo processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
XAVIER, Giseli Pereli de Moura; CANEN, Ana. Multiculturalismo e educação inclusiva: contribuições da universidade para a formação continuada de professores de escolas públicas no Rio de Janeiro. Pro-Posições, v. 19, n. 3 (57) - set./dez. 2008