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Música e a paz entre as religiões

Renan Santiago

 

Introdução

 

Espiritualidade é a forma na qual o ser humano lida, interpreta e significa o transcendental e/ou “paranormal”, as perguntas que não obtém da vida, da morte, da pós-morte e do universo; e com aquilo que não se pode ser comprovado, apenas crido. Todas as pessoas, de alguma forma ou de outra, expressam a sua espiritualidade de alguma forma, seja sobre a forma de superstição, crença em horóscopos, “destino”, “sorte”, alienígenas etc. (SANTIAGO, 2021).

Religião, por outro lado, pode ser definido como a prática institucionalizada, organizada, coletiva e doutrinada da espiritualidade. Em outras palavras, quando um coletivo de pessoas com ideias espirituais semelhantes se organiza sob determinadas regras para o exercício dessa fé, surge uma religião. Há também a religiosidade, que, conforme foi proposto por Santiago (2021), é a prática social da religião, isso é, quando sujeitos políticos utilizam de ideias religiosas para se afirmar no poder ou resistir às imposições das elites.

É importante distinguir que, embora a religião seja sagrada e inquestionável , a religiosidade é política e, caso seja necessário, pode e deve ser criticada. À guisa de exemplificação, não se deveria, sob o risco de se cair em um ato de preconceito religioso, criticar as doutrinas de certa religião, por exemplo, do porquê católicos comem a hóstia ou do porquê candomblecistas, às vezes, sacrificam animais. Mas não é um ato de intolerância questionar, criticar e denunciar o fato de certa pessoa ou grupo utilizar preceitos religiosas para causar opressão em outrem.

E de fato, a religiosidade também promove preconceitos. Recorda-se que a religião, por ser também um produto humano, é cultura em sentido lato, logo, como qualquer produto cultural, pode ser hierarquizado e imposto, e, também pode refletir em relações desiguais de poder. No Brasil, sabe-se que a maioria da população é católica e que o cristianismo é a religião oficial. Contudo, recorda-se que o cristianismo foi a religião trazida pelo colonizador e que foi imposta às(aos) negras e às(aos) indígenas, muitas vezes, sob ameaças.

 

Não se quer expressar com isso que o cristianismo seja errado, pois o próprio autor desse texto é cristão, apenas se indica que o fato da maioria da população brasileira ser cristã se deve também à imposição colonial, o que faz com que o cristianismo seja hoje a religião normativa no Brasil enquanto as outras são mais passíveis de sofrerem preconceitos. Para mais detalhes sobre como o período colonial corroborou para a criação de um pensamento social preconceituoso, a(o) leitor(a) é convidada(o) a assistir esse vídeo sobre crítica decolonial.

Pois bem, pessoas sofrem preconceitos por serem de determinadas religiões, contudo, a Música tem sido utilizada como um meio de unir pessoas com religiões diferentes e, desse modo, obter a paz. É do objetivo desse texto justamente apresentar três casos onde a prática musical uniu grupos em conflito religioso e argumentar que a Música, além de várias outras utilidades, tem também esse riquíssimo potencial: o de promover a paz.

 

O caso da Irlanda do Norte

 

A Irlanda é um país no qual existe um conflito histórico entre cristãos protestantes e católicos. Inicialmente, o país era um país basicamente celta, mas começou a ser cristianizado na tradição católica em meados dos anos 400 d.C. Séculos depois, o rei bretão Henrique XVIII tomou a região a incorporou à Grã-Bretanha. Recorda-se que esse rei foi o mesmo que rompeu com a Igreja Católica e fundou a sua própria igreja protestante: a igreja wesleyana. Como se foi discutido, a religião tem também uma faceta política, assim, com o domínio de Henrique XVIII, houve tentativas de impor o protestantismo à ilha.

Em 1672, católicos foram proibidos de atividades políticas e administrativas na Irlanda e a coroa Inglesa passou a enviar protestantes a fim de serem colonos, para administrar a ilha. Formou-se uma clara distinção entre os irlandeses: uma minoria anglo-irlandesa protestante que tem muito poder, contra uma maioria católica com pouco poder.

Mas, obviamente, os católicos não ficaram passivos e organizaram diversas revoltas e tentativas de se tornarem independentes dos britânicos, mas, em geral, a coroa os vencia. Ainda no século XIX, ingleses expulsaram irlandeses de terras férteis causando fome e morte nessa população, período esse conhecido como a Grande Fome da Batata, que, além da morte de muitos irlandeses, também ocasionou uma grande diáspora irlandesa pelo mundo, principalmente em países como os Estados Unidos e o Canadá.

Nesse período, surge o nacionalismo irlandês contra a ideia de unionismo, ou seja, de manter a Irlanda no império britânico. A independência plena só vem em 1931, depois de muita guerra, mas o norte (Irlanda do Norte) permaneceu britânica e majoritariamente protestante. Contudo, embora a independência tenha vindo, a Irlanda passou ser palco de vários conflitos internos, cujo auge foram entre 1966 a 1989, denominados The Troubles, que foram acarretados, principalmente, por conta das diferenças entre os que defendiam a independência e os que defendiam o unionismo, mas também por conta da animosidade histórica entre protestantes e católicos. Mais de 3500 pessoas morreram por conta de atentados nessa época, sendo o mais conhecido o Blood Sunday (domingo sangrento), no qual católicos foram mortos a tiros por tropas britânicas. Desse episódio trágico, veio a canção Blood Sunday, da banda U2.

Apenas em 1998 houve um acordo de paz entre o norte e o sul, mas uma assinatura não acabou com a separação de séculos de conflito. À guisa de exemplificação, até hoje, existem escolas de maioria católica e protestante na Irlanda do Norte, uma situação clássica de segregação e guetismo. O conflito também impactou na música. Odena (2017) que a música popular irlandesa é associada aos católicos, enquanto as bandas de flauta e tambores (das quais, conhecemos por quadros e figuras em livros de História), são associados a protestantes. O mesmo autor afirma que, de forma geral, as(os) professoras(es) de Música do país conhecem somente músicas características da sua religião.

Nesse contexto, Odena (2017) entrevistou professoras(es) que trabalham com Música intercomunitária na Irlanda do Norte. Ele percebeu que a música possibilitava o contato e a interação entre estudantes católicos e protestantes, bem como a eliminação de estereótipos entre grupos, algo que, sem essa intermediação musical, seria menos factível.

Mas, inda assim, existe hostilidade entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte e Odena (2017) indica dados que uma comunidade vê a outra como uma ameaça. Nesse sentido, mesmo em um trabalho para a paz, é necessário precauções e, no sentido musical, uma delas é, caso seja necessário, estimar para que o repertório usado para gerar paz entre grupos entre os quais existe animosidade seja neutro, ou seja, não represente um ou outro grupo (SANTIAGO, 2021).

 

 

A experiência no XV CDIME

 

Aqui, narro a minha experiência no XIV Cultural Diversity in Music Education International Conference (doravante CDIME), é uma conferência que acontece bianualmente e, como o nome propõe, divulga pesquisas sobre como as diferenças culturais se relacionam com a educação musical. Deixo claro que não sou rico: na edição de 2019, que foi em Tel Aviv - Israel, parcelei a viagem em milhões de vezes no cartão, escolhi o trecho mais barato (e com mais escalas...38 horas de voo via Etiópia, passei mais tempo no caminho do que em Israel), não comi nada no caminho para economizar (apenas comia os lanches oferecidos na conferência e nos aviões) e tive ajuda da UFRJ, se não, não teria como ir.

Na ocasião, apresentei uma proposta que busca esclarecer como funciona o ciclo da reprodução do monoculturalismo na educação musical brasileira. Pude conhecer pessoalmente pessoas relevantes que são minhas referências na área, como Sindsel Karlsen, Alexis Kallio, Heidi Westerlund, Danielle Treacy, entre outras. Ao final da conferência, o trabalho foi publicado no Finnish Journal of Music Education, com coautoria da professora Ana Ivenicki (SANTIAGO; IVENICKI, 2020)

O tema que eu apresentei não é relevante para o presente texto. Gostaria de falar sobre a experiência que tive em Israel. Primeiramente, afirmo que nem todo Israel é ortodoxo como se pensa, pois Tel Aviv é uma cidade bem jovial e despojada, e que lembra muito o Rio de Janeiro. Para se ter ideia, a cidade estava pintada com as cores do arco-íris, porque era semana do orgulho LGBT. Mas, deixo claro que isso ocorreu em Tel Aviv, em Jerusalém, duvido que isso seria permitido.

Israel é compartilhado, principalmente, por pessoas de três religiões: judaísmo, islamismo e cristianismo. Essas religiões têm muito em comum, principalmente, a fé no mesmo D’us (escrevi sem o “e” em respeito aos judeus) e a ascendência abraâmica. Contudo, muitas diferenças também os separam e, não raramente, há hostilidade entre judeus e mulçumanos. É possível ver relatos na internet de pessoas que querem, ainda nos dias de hoje, o fim dos judeus, e esse antisemitismo é um problema étnico, mas também religioso.

Não à toa, Israel é um país com risco de terrorismo (assim como vários outros no mundo). Eu, ao caminhar pelas praias de Tel Aviv, ficava maravilhado com a beleza incomparável daquele mar sem fim, mas me lembrava que estava em uma área de risco quando, não raramente, via um guarda israelense fortemente armado. Acho que é assim que um turista se sente no Rio de Janeiro...Mas, não se espante, nem deixe de viajar para Israel: Tel Aviv é segura!

Isso acaba influenciando a educação e, claro as crianças. Crianças judias e crianças mulçumanas são ensinadas em escolas diferentes, por meio de idiomas diferentes. Desde crianças, crescem separadas.

Mas, na conferência, que ocorreu na Levinsky Education School, algo me animou profundamente: houve uma apresentação de um simpósio (PITLIK- LAUTERSZTEIN; OUDA; LEVY, 2019) que apresentava o projeto de um coral escolar infantil formado por crianças judias e mulçumanas. Sim, elas cantavam juntas!

O objetivo do coral, além de ensinar Música, era possibilitar a inteiração entre as crianças “diferentes” e criar laços de amizade e companheirismo que diminuam as possibilidades de elas crescerem e se tornarem intolerantes. Todas as crianças, independentemente da religião, cantavam músicas em hebraico, árabe e inglês, e estavam “misturadas”, ou seja, não havia naipe de crianças judias ou de crianças árabes e, apesar de ser nítida a timidez delas, foi possível perceber que, de fato, existia amizade entre elas. Diferentemente da Irlanda do Norte, não houve a necessidade de se buscar por um “repertório neutro”. A apresentação foi linda, o coro era muito bem afinado e, como em qualquer outro lugar do mundo, as crianças eram muito fofas. Infelizmente, não pude gravar a apresentação, mas tenho algumas fotos.

 

Em suma, de fato, é bem difícil mudar a mente de uma pessoa adulta, logo, investir nas crianças é e melhor solução. A nesse contexto, a prática coral é maravilhosa, pois para que o coro cante bem, apesar de cada um(a) ter a sua parte, é necessário a união dentre as(os) presentes. É um “time que joga junto”. A(o) regente do coral pode se aproveitar dessa característica para ministrar a união, o amor, a paz e a tolerância entre as diferentes pessoas que compõem o grupo. Chama a atenção também que não basta que a música “do(a) diferente” seja cantada por nós. É importante que a pessoa “diferente” esteja também no nosso coro, cantando conosco, e sendo nossa amiga.

 

O caso Kléber Lucas

 

Agora, infelizmente, um caso não totalmente positivo. Saímos da Irlanda do Norte, passamos por Israel, agora estamos no Brasil. Há alguns anos, passou na mídia o caso do pastor e cantor Kléber Lucas que estava sofrendo perseguição e racismo nas redes sociais. O que teria feito Kléber Lucas de tão grave?

Bem, primeiramente, é importante ressaltar que, no Brasil, o candomblé é a religião que mais sofre com a intolerância e o racismo religioso (CAPUTO, 2012) e no contexto fluminense, infelizmente, é comum casas de santo serem alvos de vandalismo. Qual é o porquê de tanta intolerância e racismo religioso? Entre outros motivos, o preconceito e discriminação contra candomblecistas emerge da demonização dos orixás, ou seja, a concepção equivocada de que os Orixás do candomblé (alguns são apresentados nesse vídeo) seriam os demônios da tradição judaico-cristã.  Caputo (2012) narra que esse pensamento começa a surgir no período colonial, no qual as(os) africanas(os) escravizadas eram proibidas(os) de cultuar seus orixás.

Logo, como uma forma de resistência, sincretizaram sua fé, relacionando seus orixás às(aos) santas(os) da tradição católica. Nesse contexto, Exu, o orixá mensageiro, foi sincretizado, não por elas(es), mas sim pelos missionários cristãos como o Diabo, não pela sua maldade, até porque, na tradição Iorubá, Exu não é mau, mas por conta pela sua irreverência. Na perspectiva decolonial, que, entre outros aspectos busca recontar a história sob a ótica das(os) oprimidas(os), não se deve considerar que orixás sejam demônios.

Mas, infelizmente, muitas pessoas ainda consideram e esse pensamento cria ódio contra candomblecistas que, muitas vezes, acaba em casos de violência contra fiéis e seus templos. No município de Duque de Caxias, em 2019, aconteceu mais um desses casos[1]: um terreiro de candomblé foi destruído. Uma igreja luterana, ao saber do caso, faz uma arrecadação para a reconstrução do espaço e convidou Kléber Lucas para a cerimônia de reinauguração, que aceitou o convite. Na ocasião, ele canta a música “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, acompanhado pelos atabaques dos ogans. Todo esse evento foi gravado por alguém e compartilhado na internet, e, a partir daí, segundo conta o próprio, ele passou a ser chamado de termos racistas e também ameaçado de morte, por outros cristãos.

A Música, nessa ocasião, celebrou a convivência entre diferentes. Não se tratou de uma aula, nem se estava em um ambiente educacional, mas a música estava lá. De mãos dadas, representando a união, todas(os), independentemente de credo, raça, religião ou gênero, cantavam: “É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”. A música, naquele momento, foi escolhida como a forma na qual se promulgou a paz. Não foi uma assinatura no papel, como no caso norte-irlandês, mas uma assinatura coletiva no coração de cada um(a) presente. Mas infelizmente, nem todas(os) querem a paz e quem a busca pode sofrer por isso.

 

Considerações Finais

 

Foram trazidas aqui apenas três casos nos quais a Música foi usada para trazer a paz entre religiões diferentes. Não se ignora a existência de outras iniciativas com o mesmo método e objetivo, como projetos com crianças imigrantes na Espanha e Holanda; os projetos musicais em regiões violentas de Medellín – Colômbia, junto a crianças em vulnerabilidade social; a West-Eastern Divan Orchestra, que trabalha om crianças palestinas e israelenses; o El Sistema de Orquestras Infantis e Juvenis venezuelano, no qual orquestras são formadas por crianças carentes e fim de se combater o pauperismo e buscar a coesão entre diferentes grupos; e outras várias inciativas presentes no Brasil, principalmente por meio de ONGs, que, por meio da Música, buscam trazer inclusão social a crianças e adolescentes.

A principal mensagem desse texto é: as religiões, embora comumente associadas com a paz, podem gerar conflitos, não pelo teor sagrado delas, mas pelo uso social que alguns dos seus correligionários estabelecem a partir dela. Que os conflitos possam ser evitados, sempre! Religião não se discute, mas se conversa sobre, pois o diálogo tem o poder de gerar acordo. Contudo, caso, mesmo assim, o conflito ocorra, a música, enquanto prática social, pode unir as(os) diferentes.

 

Referências

 

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012, 296 p

ODENA, Oscar. Las visiones de profesionales sobre proyectos intercomunitarios de educación musical en Irlanda del Norte. Revista da ABEM, Londrina, v.25, n.39, 39-60, jul.dez. 2017

PITLIK-LAUTERSZTEIN, Eva; OUDE, Jousef; LEVY, Orit. Ara band Jewish children in Israel singing together. (symposium). In.: Proceedings...XIV Cultural Diversity in Music Education International Conference, Levinsky College of Education. Tel Aviv – Israel, 2019. Tel Aviv: Levinsky College of Education, 2019. Disponível em https://cdime2019.levinsky.ac.il/wp-content/uploads/sites/16/2019/06/Arab-and-Jewish-children-in-Israel-singing-together-Monday-16.pdf, acesso em 09/02/2022

SANTIAGO, Renan Santiago. Música(s) no plural!: o processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

SANTIAGO, Renan.; IVENICKI, Ana. How to break the cycle?: Music education and multiculturalism in a Brazilian context. Finnish Journal of Music Education, v. 23, p. 60-78, 2020.

 

[1] Fala de Kléber Lucas disponível em: https://youtu.be/HHRds3b2tyk, acesso em 11/12/2022

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