Um portal de aprendizagem de Música, que desafia preconceitos e discriminações.
Importante! MúsicaS, no Plural! é agora um projeto de extensão da UERJ! Por isso, estamos passando por melhorias e teremos um novo endereço:
Acompanhe a evolução aqui (provisório)
Terreiros de candomblé como espaços-tempo de resistência da cultura negra
Renan Santiago
Considerações introdutórias
Em 2003, após a pressão de diversos segmentos da sociedade e de movimentos sociais, dentre os quais se destaca o Movimento Negro, foi promulgada a Lei 10.639 (BRASIL, 2003), que impõe como obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas regulares, públicas e particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio.
Essa lei foi recebida positivamente pela maioria da sociedade, pelo seu potencial de reverter parte da dívida histórica que a sociedade brasileira tem com os negros, contudo, a sua implementação é um desafio que incentiva pesquisas e reflexões até os dias atuais.
Como deve se dar tal implementação? Quais disciplinas serão influenciadas? Quais conteúdos serão abordados? Quais conteúdos não serão abordados? Qual será o treinamento que os(as) docentes deverão ser submetidos para ensinar tais conteúdos? Qual será a forma de avaliação?
Longe de buscar responder a todas essas perguntas, o presente projeto busca se inserir nas problemáticas que surgiram a partir da promulgação da supracitada Lei, apresentando os terreiros de candomblé como locais de resistência e (re)produção do saber negro.
Recorda-se que o candomblé é um substantivo coletivo que designa diferentes manifestações religiosas e culturais de origem afro-brasileira, que, em comum, apresentam o fato de prestarem culto a ancestrais espiritualizados – orixás, voduns, inquices e eguns – que têm capacidade de se manifestar aos fiéis via transe mediúnico, em cultos religiosos. Alguns exemplos de modalidades de rituais e de liturgias que podem entram no bojo do candomblé são o candomblé Jeje, o candomblé Angola, o candomblé Ketu-Nagô, o Xangô do Recife, o Batuque e o Tambor de Mina (FONSECA, 2002).
O negro africano, pelo advento da escravidão forçosa e violenta empreendida pelo colonizador português, trouxe consigo não somente o seu corpo, mas também a sua cultura, a sua ancestralidade, o seu conhecimento e a sua capacidade de resistir à aculturação. De geração em geração, o povo negro conservou os seus conhecimentos e os transmitiu por meio da tradição oral, conseguindo assim, driblar os colonizadores por meio de diferentes estratégias, dentre as quais incluem o sincretismo, com o qual as pessoas em situação de escravidão conseguiam cultuar os orixás mesmo dentro das igrejas católicas. (CAPUTO, 2012)
Assim sendo, o candomblé é um dos símbolos da resistência da epistemologia e cosmogonia afro-brasileira. A existência de incontáveis terreiros de candomblé espalhados pelo Brasil e pelo mundo onde ainda encontram-se preservadas muitas das características originais dessa cultura, como a língua falada nos rituais, os objetos sacros e os cânticos, demonstram que, efetivamente, cada terreiro de candomblé é um espaço-tempo privilegiado de (re)produção do saber genuinamente africano, mesmo estando fora da África. Em outros termos, cada terreiro é uma ilha de conhecimento negro.
Recorda-se que instituições religiosas, sobretudo, igrejas católicas, são regularmente visitadas em excursões pedagógicas, pois muitas delas possuem obras de arte que datam do barroco e do romantismo. No âmbito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), por exemplo, existe o Projeto de Cultura e Extensão conhecido como “Igrejas Históricas do Rio de Janeiro: descobrindo e revelando seus acervos”. Desse modo, se as igrejas, instituições religiosas de origem europeia, podem ser usadas em atividades educativas para se apresentar a cultura europeia, porque os terreiros não poderiam ser usados para se ensinar sobre cultura afro-brasileira?
Nesse sentido, justifica-se a escolha desse tema, argumentando-se que os terreiros de candomblé podem se constituir como espaços não formais de aprendizagem, contribuindo, assim, para a implementação da Lei 10.639/2003. Destarte, o objetivo do presente texto é, justamente, apresentar as potencialidades educativas desse espaço, indicando o que se pode aprender em uma visita guiada a um terreiro de candomblé.
Referencial Teórico
O presente projeto está respaldado teoricamente na pedagogia decolonial (WALSH, 2012) e nas pedagogias de terreiro (CARVALHO, 2019; NOGUERA, 2011; OLIVEIRA, 2005; RODRIGUES JUNIOR, 2018; SILVEIRA, 2004).
As pedagogias decoloniais partem da ideia de que o período colonial, apesar de já ter se findado, causou marcas tão profundas no pensamento social e no modo de funcionamento das instituições que perduram até a contemporaneidade. Essas marcas, em conjunto, formam a colonialidade, que é mantida erguida por aquilo que Walsh (2012) denomina eixos da colonialidade. Tais eixos são a colonialidade do saber, colonialidade do poder, a colonialidade do ser e a colonialidade cosmogónica.
Define-se colonialidade do saber como os diferentes processos que criam a noção de que apenas a epistemologia europeia, branca e masculina pode ser considerada um saber verdadeiro. Já o conjunto das diferentes dinâmicas socioculturais que corroboram para que a maioria do poder se concentre nas mãos das elites é denominado colonialidade do poder.
Semelhantemente, a colonialidade do ser indicaria que a humanidade se expressa somente e apenas dentro dos padrões ontológicos europeus, negando, muitas vezes, a humanidade das outras formas humanas, sejam elas culturais ou fenótipas.
Por fim, mas não menos importante, tem-se a colonialidade cosmogônica, que se refere ao fato de o colonizador impor a sua religião e cosmovisão como unicamente verdadeira e aceitável às culturas colonizadas, o que, por conseguinte, gerou a mitificação e a demonização dos deuses da África, da América Latina e da Ásia.
Percebe-se claramente como esses eixos operam na contemporaneidade brasileira. O saber erudito e científico, que é o mais valorado nos ambientes acadêmicos, é quase sinônimo de saber europeu, como se as epistemologias ameríndias e africanas não possuíssem nenhum grau de erudição e de cientificidade. Semelhantemente, percebe-se que o poder se concentra nas mãos de conservadores, que tendem a reproduzir a cultura e valores trazidos e impostos pelos europeus. Da mesma forma, o ser “humano ideal”, representado na mídia, requisitado nas entrevistas de emprego, e bem-aceito em todos os âmbitos da sociedade é branco, masculino, urbano e cristão, ou seja, tem a raça, gênero, etnia e religião do colonizador.
Finalmente, aparecendo de forma central nesse trabalho, a colonialidade cosmogônica atua impondo o cristianismo como a única forma aceitável de alguém expressar a sua espiritualidade, e, muitas vezes, rechaçando veementemente ateus ou quem professa uma outra religião. No caso das religiões de matriz afro-brasileira, a problemática se torna mais acentuada, uma vez que, no período colonial, os deuses africanos foram associados aos demônios cristãos, fazendo com que muitas pessoas tenham medo ou repulsa de tudo aquilo que é relacionado às religiões africanas ou à própria África (CAPUTO, 2008, 2012).
Emerge, desse modo, o conceito de racismo religioso, que se distingue da intolerância religiosa, por combinar aspectos raciais e religiosos. Em outros termos, o preconceito que os professantes de religiões de matriz afro-brasileira sofrem não provém somente da religião em si, mas também do fato dessa religião ser de origem negra. Por meio desse contexto, pode-se entender por que atualmente, os candomblecistas são os principais alvos de preconceito e racismo religioso no Brasil.
As agressões que esses grupos sofrem chegam ao nível da violência física. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, são frequentes as reportagens que mostram terreiros e casas de santo atacadas por vândalos[1]. Muitas são impedidas de funcionar e os responsáveis pelas casas sofrem ameaças[2], por serem considerados demoníacos.
Tal preconceito chega à escola, onde pesquisas indicam que estudantes candomblecistas sofrem vilipêndios não somente de outros estudantes, mas também da própria equipe docente e gestora das escolas. Caputo (2008, 2012), ao entrevistar crianças candomblecistas, ouviu, de forma unânime, falas sobre o preconceito e racismo que sofrem em tal instituição: como por exemplo, “na escola é muito pior. É muita zoação, não dá para aguentar” (CAPUTO, 2008, p. 172).
Como forma de autodefesa, a fim de evitarem preconceitos, muitas(os) optam por esconderem suas identidades, ou não assumindo que são candomblecistas ou afirmando, algumas vezes, serem católicas, a fim de sobrevivem à pressão ideológica cristã que habita o espaço escolar. Tem-se, nessa perspectiva, duas formas de sobrevivência que, infelizmente, muitos candomblecistas precisam enfrentar para poderem frequentar a escola: silenciamento e sincretismo, mas mesmo assim, Caputo (2008, p. 171) conclui: “Todas as [...] crianças e jovens sobre as quais conversamos anteriormente já foram discriminadas por pertencerem ao candomblé”.
Porém, não se pode pensar nos candomblecistas como simples vítimas, indefesas, sem poder de reação. Pelo contrário, no âmbito da pedagogia e da educação, diversas correntes teóricas emergem como formas de darem vez e voz à cultura negra, bem como para resistir à violência simbólica na sociedade e difundir a filosofia e a epistemologia africana.
Essas são as chamadas pedagogias de terreiro, que ganharam força após a promulgação da Lei 10.639/2003. Apesar de diferentes em propostas e ações, elas têm em comum o pressuposto de que o terreiro é também um espaço de conhecimento, e que tal conhecimento pode ser empregado na educação formal a fim de colaborar para uma educação antirracista, além de mais humana, integrada com a natureza e transformadora não somente para as crianças candomblecistas, mas para todos(as) os(as) estudantes das escolas, pois os saberes e conhecimentos que circulam nos terreiros tem potencial para melhorar a sociedade como um todo.
O que se segue abaixo é um pequeno resumo de algumas pedagogias de algumas(uns) intelectuais que buscam empregar os conhecimentos candomblecistas e umbandistas em sala de aula.
Rodrigues Junior (2018), por exemplo, propõe uma “pedagogia das encruzilhadas”. Em suma, por meio de uma crítica ao fato de a pedagogia escolar se centrar nos saberes ocidentais, o autor sugere um caminho para a reconstrução dos saberes por meio dos saberes e dos conhecimentos afro-brasileiros. Nessa construção epistemológica, Exu é apresentado como uma sabedoria, ou seja, como uma forma outra de se explicar e conceber a vida, divergindo dos saberes tidos como universais e dos binarismos fixadores, por meio de um pensamento que valoriza o movimento e a transgressão. Desse modo, a pedagogia das encruzilhadas vê as diferenças como algo iminente à vida e busca incorporar saberes e temporalidades da ancestralidade africana na educação escolar.
Semelhantemente, Oliveira (2005) propõe uma “pedagogia dos baobás”, também centrada na sabedoria tradicional africana. Tal pedagogia afirma que é necessário propor um conhecimento sobre os negros e a cultura negra que não se limite às denúncias de racismo, mas também apontar para as potencialidades do conhecimento africano em si. Recorda-se que “baobá” é uma árvore africana na qual, à sua sombra, histórias eram contadas e a cultura africana era transmitida, portanto, a figura do baobá remete à sabedoria, ao ensino, à ancestralidade e à relação homem-natureza.
Dentro deste mesmo bojo, está a pedagogia do axé. Entende-se, no candomblé, o as̩è como uma espécie de energia vital, o sopro de Olorun que possibilita a vida e, nesse contexto, Carvalho (2019) aponta que essa pedagogia busca centrar-se em todas as tradições ancestrais africanas, como a feitura do círculo, o respeito à ancestralidade e sobretudo, o uso da tradição oral (meio pelo qual o conhecimento ancestral é transmitido, adquirido e perpetuado na ancestralidade africana).
Talvez, uma diferença marcante entre a pedagogia dos baobás e a pedagogia do axé é o caráter mais crítico da segunda. Carvalho (Idem) afirma que
A pedagogia do axé [...] reconhece no passado as premissas do presente e invoca ancestralidade para não se resignar às relações de dominação, mas para enfrentá-las com a sabedoria daqueles que, há pelo menos 500 anos, resistem aos grilhões da escravatura.
Na perspectiva da Filosofia, mais propriamente, a epistemologia, tem-se a filosofia afroperspectivista, centrada na sabedoria e pioneirismo africano, na corporeidade e no movimento. Nogueira (2011, p. 4) afirma que:
A filosofia afroperspectivista está assentada sobre uma imagem do pensamento que pode ser apresentada em três teses básicas: 1ª) Pensar é movimentação, todo pensamento é um movimento que ao invés de buscar a Verdade e se opor ao falso, busca a manutenção do movimento; 2ª) O pensamento é sempre uma incorporação, só é possível pensar através do corpo; 3ª) A coreografia e o drible são os ingredientes que tornam possível alcançar o alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento.
Longe de querer esgotar todo o cabedal teórico que nasce nos terreiros e inundam as universidades brasileiras, os poucos exemplos acima buscam mostrar que a(o) negra(o), ao ser covardemente transportada(o) para o Brasil, não trouxe consigo apenas o seu corpo, mas também seu conhecimento milenar, que foi capaz de resistir à violência simbólica e, contemporaneamente, tem abalado as estruturas e o tradicionalismo da academia.
Nesse sentido, o presente projeto, que busca reconhecer os terreiros também como lugares de conhecimento, contudo, se diferenciará das pedagogias de terreiro supracitadas por sugerir um caminho inverso: ao invés de levar o conhecimento afrocentrado para as(os) estudantes na escola, o projeto intenta levar os(as) estudantes para o local do conhecimento, a saber, os terreiros, por meio de uma visita pedagógica.
A metodologia a ser realizada para que esse projeto se torne possível será descrita a seguir.
Metodologia
Pensa-se que a visita de terreiros a fim de se aprender mais sobre cultura e história afro-brasileira e africana podem servir para a formação de professoras(es) de qualquer disciplina. Escolheu-se esse grupo porque se trata de um público propício para uma intervenção de cunho antirracista e que busca instrumentalizar docentes para a correta implementação da Lei 10.639/2003.
Dentro desse contexto, destaca-se licenciandos em Música, foco desse portal. De fato, a Lei supracitada indica que todas as disciplinas precisam contemplar os seus indicativos, mas haveria um foco central nas disciplinas de História, Literatura e Educação Artística. Segundo a Lei 13.278/2016, dentro do bojo da arte está a disciplina de Música. Contudo, mesmo as questões não estritamente musicais - como gastronomia, preservação da natureza, que serão discutidas a seguir - podem ser de muita valia para musicistas. Não se ignora também que essa intervenção poderia ser usada na educação básica também, e não somente na formação de professoras(es).
Argumenta-se também que , por conta da colonialidade cosmogônica já descrita, possivelmente, muitas normalistas poderão se recusar em visitar um terreiro. Portanto, primeiramente, é necessário realizar aulas prévias, que virão a desconstruir possíveis preconceitos das estudantes. Mesmo assim, sabe-se que muitas estudantes se recusarão a ir à visita pedagógica, contudo, acredita-se que algumas serão convencidas e irão.
Qualquer terreiro poderia ser utilizado como instituição cultural, contudo, alguns terreiros já mantém essa prática. Por exemplo, o Ilê Omiojuarô, localizado em Nova Iguaçu - RJ é (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio cultural brasileiro e se abre costumeiramente para atividades educacionais, como pesquisas acadêmicas.
Obviamente, seria necessário contatar a liderança do terreiro e combinar a visita. Uma única visita seria necessária e poderia ser em um dia no qual não haveria cerimônias, para que as visitas não atrapalhem o desenrolar dos cultos e, também, para que a atenção seja toda destinada às professoras em formação.
Nesse dia, a Íyálórìs̩a, isto é, a líder espiritual da casa, poderia fazer uma incursão guiada ao local, explicando cada aspecto do terreiro. Após, poderia fazer uma palestra, com a qual poderá responder perguntas e desconstruir possíveis estereótipos e estigmas que as estudantes levam consigo. Por fim, haveria uma apresentação de cânticos e danças afro-brasileiras, bem como a degustação de comidas que, usualmente, são servidas no terreiro.
No dia de aula após a visita, objetiva-se que as estudantes que não puderam ir ou que se recusaram a ir também sejam impactadas. Para tal, será solicitado que as professoras(es) em formação que foram ao terreiro contem às que não foram sobre suas impressões sobre o local, sobre o que puderam aprender sobre cultura afro-brasileira, e sobre o que foi modificado nelas em relação ao que eles percebiam sobre as religiões de matriz afro-brasileira. Poderiam ser também exibidos vídeos e fotos da visita.
Resultados Esperados
O que se aprende quando se visita um terreiro de candomblé? Respondendo à questão, esperam-se muitas aprendizagens na visita em questão.
Preservação da natureza
Primeiramente, espera-se que as estudantes aprendam sobre como cuidar da natureza, pois sem natureza não existe candomblé (SANTIAGO, 2021). Isso porque os orixás, inquices e voduns, são, justamente, as forças da natureza em ação. De Oxalá, por exemplo, é dito que ele é o ar. Iansã seria os oceanos e mares. Oxum corresponderia aos rios e cachoeiras, enquanto Xangô teria poder sobre o trovão e a luz. Já na nação Jeje, as árvores em si seriam sagradas, por possuírem espíritos de ancestrais. Nesse sentido, transgredir contra a natureza seria ir contra os próprios orixás, e, por tal razão, o candomblé estima o cuidado e a preservação da natureza.
Semelhantemente, na cosmologia candomblecista, todos os elementos naturais possuem àsé, que seria uma espécie de energia espiritual vital, um poder que faz as coisas acontecerem. Nesse sentido, todos os seres vivos, desde animais até as plantas, até coisas inanimadas, como pedras e troncos, possuem tal energia. Assim sendo, a filosofia candomblecista afirma que se deve ter respeito por toda a natureza, pois toda ela possui resquícios de espiritualidade.
Filosofia africana
Se o terreiro é uma escola, os orixás e as iabás seriam os professores e professoras. Quando essas entidades emergem no terreiro por meio dos médiuns (adós̩ù, na nação Ketu), elas orientam os presentes por meio da sua sabedoria. Em geral, tais ensinamentos estão relacionados ao bom convívio em sociedade, como exercer a solidariedade e a empatia, fazer o bem ao próximo, ser responsável, ser tolerante, ser respeitoso com as mulheres, respeitar hierarquias, mostrar estima aos mais velhos, entre outras questões éticas (CAPUTO, 2008, 2012).
Na contemporaneidade, onde se percebe a deterioração de diversos valores morais, e a desvalorização do ser humano e da própria vida, os ensinamentos éticos e morais do terreiro podem ser contribuir para uma formação de seres humanos mais humanos, empáticos e bondosos. Outro aspecto importante é a importância da tradição oral para a cultura africana subsaariana em geral (de onde provém o candomblé). Indubitavelmente, um dos fatores que corroborou para que o candomblé não tenha se extinguido mesmo com tantos séculos de opressão colonialista é o fato dessa sabedoria ser passada oralmente, logo, os altos segredos da religião (awó) só são passados para correligionários de confiança, que não exporão tais segredos para pessoas erradas.
A escola, que em geral, superestima a leitura e a escrita em detrimento à conversa, tem muito a aprender com a transmissão oral do candomblé. É importante que as(os) professoras(es) abandonem a concepção tradicional de que elas(es) são as(os) detentoras(es) do saber e que, por tal razão, apenas elas(es) têm o direito de falar, cabendo às(aos) estudantes apenas “abaixar as orelhas” e aprender. O candomblé, por sua vez, estima a formação em roda, onde todas(os) podem se enxergar e estabelecer um diálogo, diálogo esse respeitoso, no qual existe hora para falar e hora para ouvir. Quem tem algo a ensinar é estimado pelas(os) demais, mas quem está aprendendo, não é visto como inferior (CAPUTO, 2012).
Protagonismo na infância
A perspectiva ocidental de infância, por vezes, coloca a criança como um ser indefeso, inativo, extremamente dependente de adultos e pouco atuante (COHN, 2013). Em geral, as crianças são vistas como um ser que será alguém quando crescer, e não como alguém que já é. Obviamente, as crianças estão em formação, contudo, argumenta-se que todo o ser humano também está em constante processo de desenvolvimento, até o falecimento. Em outros termos, uma pessoa não deixa de se desenvolver ao chegar à fase adulta.
Nesse sentido, o candomblé possibilita que crianças, mesmo as bem pequenas, tenham lugar de destaque e de hierarquia. Isso porque, no candomblé, o tempo de iniciado é mais importante do que o tempo de vida, ou seja, uma criança de cinco anos e que tenha cinco anos de candomblé pode ter um nível hierárquico maior do que um adulto com vinte e cinco anos, mas com apenas um ano de iniciado (CAPUTO, 2012).
Caputo (2012) discorre sobre essa questão. Algumas crianças entrevistadas pela autora já possuíam cargos e responsabilidades dentro do terreiro apesar de suas poucas idades. Ricardo, por exemplo, com 4 anos, já era ogan; já Noam, aos 16, já era adós̩ù. Felipe, por sua vez, aos 4 anos era iniciado como amúìsan e aos 5 já era òjè; e Joyce, aos 13, era ègbónmi e Luana, aos 4 anos, já tinha seu futuro traçado: seria Íyálórìs̩a.
Caso a(o) leitor(a) não esteja familiarizado com os cargos do candomblé, segue uma pequena explicação. Primeiramente, ogan é a pessoa incumbida de tocar os atabaques nas cerimônias religiosas, possibilitando assim, que os òris̩às apareçam no terreiro. Mais do que simplesmente tocar os atabaques, o ogan precisa saber o toque que possibilita a incorporação de cada òris̩à[3] e, do mesmo modo, precisa tocar com perfeição, pois, segundo Caputo (2008, 2012), os òris̩às não gostam que os ogans errem o ritmo. Adós̩ù é a designação dada às pessoas que passam por um ritual de iniciação complexo, que dura dias e que é envolvido em mistérios da própria religião. Após iniciada, a(o) adós̩ù pode receber òris̩às, em outras palavras, pode incorporar, cedendo seu corpo para que uma entidade possa se materializar no terreiro. Por sua vez, os amúìsan são aprendizes, ajudantes e candidatas(os) a se tornarem òjè, ou seja, aquelas(es) que, no culto chamado lésè-ègún[4], atuam diretamente com impedem que a roupa do Égún toque nas pessoas, o que poderia causar malefícios a estas. Aparentemente, ambos amúìsan e òjè evitam tal contato, porém, os òjè têm um cargo hierárquico mais alto. Por fim, ègbónmi é a pessoa que cumpriu a obrigação de sete anos de iniciada, podendo, ao ganhar mais experiência, se tornar Íyálórìs̩a (feminino) ou Bàbálórìsà (masculino), que é um cargo altíssimo no candomblé, conhecido popularmente como “mãe-de-santo” ou “pai-de-santo”, ou seja, a mulher ou homem responsável por uma casa de santo e a quem é solicitada a autorização para tudo o que precisar ser decidido dentro do terreiro.
Nessa perspectiva, as crianças, sem dúvida, têm vez e voz no candomblé. Tal questão ficou bastante clara na pesquisa citada, visto que, na grande maioria das vezes, quem explicava a religião para a pesquisadora – à época, leiga no assunto – eram justamente, as crianças. Isso remete a várias reflexões possíveis, primeiramente, sobre a forma que pensamos a infância. As crianças das escolas – incluindo aquelas da educação infantil- que muitos pensam saberem pouco e, por tal razão, algumas vezes, são impedidas de falar e/ou manifestar seus desejos, sendo submetidas ao “conhecimento superior” das(os) adultas(os), já possuem um amplo conhecimento sobre os preceitos e regras de culto de uma religião extremamente complexa e cercada de mistérios[5].
Existe, portanto, um descompasso grande em como a escola e o terreiro concebem a infância. Apesar da escola ser uma instituição educativa, os terreiros parecem estar mais avançados em relação do tratamento da infância do que elas.
Integração artística
Praticamente, todas as expressões artísticas emergem nos terreiros. Tem-se a música, que pode ser considerada o combustível dos cultos, pois por meio dos complexos toques de atabaque e gans, que acompanham cânticos entoados em alguma língua africana (iorubá, no candomblé Ketu; ewe-fon, no candomblé Jeje; e umbundo e quimbundo, no candomblé Angola) os orixás surgem no terreiro e realizam a sua dança. Também, percebe-se a criatividade e a beleza da indumentária vestidas pelos orixás, repletas de cores e adornos. Não se ignora também as estátuas que representam os orixás e santos católicos, que adornam os altares e as prateleiras do terreiro.
Em suma, a Arte dá vida aos terreiros e ela eclode de forma transdisciplinar: a indumentária abrilhanta a dança e, não há dança sem canto. Do mesmo modo, não há canto sem toque de atabaque. Está tudo conectado, de tal maneira que o modo como a Arte se manifesta nos terreiros pode indicar pistas sobre o modo de o professor trabalhar as linguagens artísticas (Música, Dança, Teatro, Artes Plásticas, Artes Visuais etc.) integradamente, e não de forma isolada, como usualmente ocorre.
Gastronomia
Os alimentos também possuem papel importante nos cultos de candomblé, uma vez que eles funcionariam como forma de integrar humanos e deuses, e humanos com seus iguais. Além do mais, os alimentos também possuem asé, portanto, ao se comer no terreiro, alimentar-se-ia o corpo, mas também o espírito.
É interessante ressaltar que não são somente os orixás e os professantes que comem. Comem também os elementos sagrados dos cultos, como atabaques e fios de conta e, desse modo, toda a comunidade se integra. Recorda-se que o atabaque, por ser feito de madeira, que, por sua vez, é proveniente de uma árvore, é considerado uma pessoa no candomblé, já que as árvores também são ancestrais.
Nesse sentido, o candomblé preserva ingredientes e pratos tipicamente africanos e afro-brasileiros, como o acarajé, o caruru, o angu, a farofa, o ejá, o inhame, o camarão seco, a pimenta, entre outros. Desse forma, os alimentos e o modo de preparo deles no candomblé são sagrados, o que corrobora para que o ato de se alimentar transcenda a mera questão da necessidade biológica e ganhe um significado social e espiritual.
Não à toa, existe um cargo no candomblé que designa a responsável pelo preparo dos alimentos: a Iyabassê. Tal pessoa é extremamente instruída na religião, pois não cabe a ela somente cozinhar, mas preparar os alimentos dentro dos rituais necessários para a comida ser considerada sagrada.
Alguns elementos do uso dos alimentos no candomblé podem ser trazidos para a escola e para a prática docente. Por exemplo, a professora poderia buscar valorizar os alimentos e pratos afro-brasileiros, deixando claro à sua turma que eles são provenientes do candomblé, o que, além de aumentar o conhecimento das estudantes, poderia ajuda-los(as) a estimarem essa cultura. Do mesmo modo, a docente pode buscar integrar sua turma, por meio de um lanche ou almoço em conjunto, solicitando que cada um, por exemplo, traga um prato ou alimento que goste muito para compor a refeição. Tal refeição, não necessariamente, precisaria ser feita em uma data especial, poderia ser feita simplesmente para fortalecer os laços da turma. Tais atividades, mesmo que indiretamente, trazem traços da cultura africana para o cotidiano da sala.
Antirracismo
Por fim, mas não menos importante, valorizar o candomblé é valorizar a cultura, a epistemologia negra, e a própria pessoa negra. Na pesquisa de Caputo (2008, 2012), destacam-se frases como “Eu amo o candomblé”, “Amo a hierarquia, as festas, os rituais, os Òris̩à”, “Sou negra! Candomblé é uma religião negra! E todos nós, os negros, deveríamos ser do candomblé, isso nos faria ser mais unidos e mais fortes” (CAPUTO, 2008, pp. 170-1), “Sou negra e tenho orgulho da minha religião que é negra!” (CAPUTO, 2008, p. 177), que indicam que o candomblé permite o pertencimento identitário de muitas(os) professantes negras(os). Desse modo, ao se dar direito de voz a ogan, adós̩ù, amúìsan, òjè, ègbónmi, iyabassê, íyálórìs̩a, bàbálórìsà, entre outros sacerdotes, valorizar-se-á um conhecimento originalmente negro e que também é mantido e propagado por negras(os), em sua maioria.
Semelhantemente, ao se destacar o candomblé como um espaço de conhecimento, seria possível quebrar estereótipos que indicam que apenas a Europa produz epistemologias e filosofias, o que tende a taxar os outros continentes, principalmente a África, como intelectualmente atrasados. Nesse sentido, argumenta-se que a valorização da epistemologia africana como uma forma de conhecimento tão legítima como a epistemologia europeia poderia ajudar a diminuir o racismo epistemológico.
Por fim, indica-se que boa parte dos preconceitos são produzidas pela ignorância. As(os) estudantes, ao visitarem os terreiros e terem contato com o candomblé autêntico, e não por aquilo que outros falam ou acham do candomblé, poderão perceber que suas impressões prévias são, possivelmente, equivocadas.
Considerações Finais
O presente projeto apresentou a possibilidade de terreiros de candomblé se constituírem em locais de visita pedagógico-culturais tão potentes quanto museus e exposições, a fim de possibilitar que professoras em formação aprendam sobre cultura, filosofia, epistemologia e história afro-brasileira.
Na expressão popular, seria como “matar dois coelhos com uma única cajadada”, pois ao mesmo tempo que a escola normal estaria cumprindo a Lei 10.639/2003, tal visita possibilitaria que as professoras em formação fossem também instrumentalizadas para cumprir tal Lei quando se formarem professoras e trabalhassem como docentes.
Por fim, longe de expressar tudo o que se pode aprender em visitas ao terreiro, argumenta-se que os parágrafos acima podem, mesmo que não totalmente, indicar respostas para a pergunta-título desse projeto.
Referências
BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 2003.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012, 296 p
CAPUTO, Stela. Ogan, adósu òjè, ègbónmi e ekedi: o candomblé está na escola. Mas como? In.:MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria Ferrão (orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CARVALHO, Luiza Sousa de. A pedagogia do axé: promoção da cidadania e fortalecimento da identidade negra pelo projeto abc musical. Revista Calundu – vol. 3, n.1, Jan-Jun 2019.
COHN, Clarice. Concepções de infância e infâncias: um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio-ago., 2013
FONSECA, Edilberto J. de M.. O Toque da Campânula: Tipologia Preliminar das Linhas-Guia do Candomblé Ketu-Nagô no Rio de Janeiro. Cadernos do Colóquio (UNIRIO), Rio de Janeiro, v. 1, n.5, p. 8-19, 2002
NOGUERA, Renato. Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivistas. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.4, n.2, dezembro/2011.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: Corpo e Mito na Filosofia da Educação Brasileira. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, 2005.
RODRIGUES JUNIOR, Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas. Revista Periferia, v.10, n.1, p. 71 - 88, Jan./Jun. 2018
SANTIAGO, Renan. Música(s), no plural!: o processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, 2021.
SILVEIRA, Marialda Jovita. A educação pelo silêncio: o feitiço da linguagem no candomblé / Marialda Jovita Silveira. – Ilhéus, Ba : Editus, 2004. 207p.
WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012
[1] Segue matéria jornalística que discorre sobre o assunto: https://extra.globo.com/casos-de-policia/terreiro-de-candomble-em-madureira-atacado-pela-segunda-vez-em-quatro-meses-23712034.html. Acesso em 29/09/2019.
[2] Segue vídeo que discorre sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=pQ5RQAyyme8&ab_channel=F%C3%A1bioPinheiroLau. Acesso em 29/12/2021.
[3] São, de forma simples e superficial, as entidades cultuadas no candomblé.
[4] Não é do intuito desse projeto explicar pormenores do candomblé, porém, a fim de informar melhor o(a) leitor(a), explica-se que o culto candomblecista se divide em lésè- òris̩à e lésè-ègún. No primeiro, os òris̩às são cultuados, porém no segundo, o culto é dirigido aos ègús, que, segundo Caputo (2012, p. 150), “é o antepassado masculino importante para a família que, de acordo com a tradição e só depois de disciplinado, recebe a roupa ritual (que o representa) e passa a se manifestar no terreiro, a fim de orientar os correligionários por meio de conselhos e recados, passar a sua energia (àsé) e confraternizar.
[5] Estes são os chamados “awò”, conhecimentos que só são passados para outros candomblecistas, como forma de proteger o culto. Caputo (2008, p. 168) afirma que “o candomblé, como toda da religião afro-descendente, é cercado de segredos e mistérios”.



Aulas multiculturais de Música para a Educação Infantil (4-5 anos)
